1 – Quando no início dos anos 1990, o ex-presidente dos Estados Unidos, George Herbert Walker Bush, em meio aos acontecimentos que conduziram ao fim da Guerra Fria e à primeira Guerra contra Iraque, proclamou o advento da chamada Nova Ordem Mundial, estava na verdade anunciando um terrível plano de dominação global cujas trágicas conseqüências se abateram sobre a humanidade ao longo das duas últimas décadas e principalmente entre 2001 e 2008.
A proclamação da "nova ordem" visava estabelecer os meios e modos para percorrer "o novo século americano". Seguiu-se um período de uso indiscriminado da força bruta, desprezo pela legalidade internacional e pelas instituições multilaterais, de militarização crescente das relações internacionais, de decisões unilaterais, de menoscabo às Nações Unidas, de dominação unipolar, de imposição da primazia dos interesses estadunidenses no mundo.
A posição internacional dos Estados Unidos foi marcada pela denominada guerra infinita ou permanente ao terrorismo, que ao ser identificado não só com organizações e redes informais, mas com estados nacionais classificados como integrantes do chamado eixo do mal, assumiu todos os contornos de guerras de agressão contra países e povos, sob o pretexto de promover ataque preventivos contra os que eram considerados terroristas ou protetores do terrorismo.
Em decorrência disso, foram desencadeadas as guerras de agressão ao Afeganistão e ao Iraque e de Israel ao Líbano e ao povo palestino. Países independentes, como a Síria, o Irã e a República Popular Democrática da Coréia, por motivações diversas, foram alvo de campanhas e ameaças de agressão. Surgiram novos focos de tensão, com a guerra do Cáucaso, a expansão da OTAN para o leste da Europa e a afirmação de novo conceito estratégico desse braço armado do imperialismo que institucionalizou sua presença em conflitos fora da Europa. A militarização se intensificou com a proliferação de bases militares, a criação do Comando Africano (AFRICOM), a competição naval no Oceano Indico para neutralizar a China e o relançamento da Quarta Frota da Marinha de Guerra dos Estados Unidos na América Latina.
2 – Com a eleição do novo presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, em novembro de 2008, a humanidade passou a viver na expectativa de uma mudança de rumos na situação internacional, que se traduziria na abertura de uma nova era de paz, convivência democrática entre as nações, segurança, respeito ao direito internacional, vigência dos direitos humanos e restauração do multilateralismo sob a égide de uma Organização das Nações Unidas reformada e pró-ativa na solução pacífica dos conflitos. Tais expectativas foram alimentadas por uma aparatosa propaganda e pela exaltação da capacidade de regeneração e transmutação da superpotência estadunidense.
Mas o movimento pela paz não se deve permitir ilusões. Mesmo considerando as diferenças de métodos e estilos entre os partidos Democrático e Republicano e o perfil distinto do presidente Obama comparativamente ao seu antecessor, o qual passou a história como o mais agressivo e antidemocrático presidente dos Estados Unidos, moralmente condenado como fautor de crimes de guerra contra a humanidade, devemos analisar os fenômenos com objetividade para procurar entender o que está em curso na realidade dos Estados Unidos e internacional.
O objetivo explícito de Barack Obama, manifestado desde a campanha eleitoral do ano passado, é recuperar a liderança mundial dos Estados Unidos, em todos os domínios – político, diplomático econômico, fazendo valer se necessário, o seu poder militar. "Para triunfar -disse Barack Obama durante a campanha eleitoral – necessitamos de uma liderança que entenda a conexão entre nossa economia e nossa força no mundo. Nós ouvimos frequentemente acerca de dois debates – um em segurança nacional e outro sobre a economia – mas é uma distinção falsa. Devemos ser fortes em casa e fortes no exterior – essa é a lição de nossa história. Nossa economia apóia nosso poder militar e aumenta nosso nível diplomático, e esses são os cimentos da liderança americana no mundo. Agora, devemos renovar a competitividade americana para apóia nossa segurança e liderança global". (Discurso de campanha na Virgínia, em 22 de outubro de 2008). Em ouro pronunciamento na mesma campanha eleitoral, Obama anunciou objetivo de "fazer deste século outro século dos Estados Unidos", o que em sua opinião será alcançado "com uma nova direção e uma nova política".
3 – A profundidade da crise econômica do capitalismo que tem seu epicentro nos Estados Unidos, as fragilidades estruturais da economia do país, as dívidas, os déficites gêmeos, a deterioração do padrão dólar, os sinais de declínio da hegemonia econômica norte-americana no mundo, a gravidade da crise social, as dificuldades da agenda política interna e sobretudo as derrotas sofridas no terreno internacional fazem com que o novo presidente busque um caminho distinto do que foi percorrido nos últimos anos. O país precisa de uma agenda externa mais estável, recompor alianças, restituir prestígio, restaurar a imagem. Por isso o presidente, já no discurso de posse, em 20 de janeiro deste ano, falou de "restaurar as fortes alianças e a diplomacia americana", o que leva alguns acadêmicos a falar nas condições para o exercício do "poder brando" e do "poder inteligente".
Os primeiros meses do novo presidente têm sido, assim, marcados na área externa por uma combinação de pragmatismo, cautela, habilidade política em face de problemas delicados, muita retórica, ações pendulares e grandes operações de marketing político. O presidente Obama refere-se criticamente à política de instalação de colônias na Cisjordânia, mas reafirma o compromisso com a "segurança" de Israel, mantém a ajuda militar e autoriza a participação do exército norte-americano em exercícios militares conjuntos com o exército israelense. Anuncia que fechará o campo de concentração de Guantánamo, relaxa os aspectos mais odiosos do bloqueio a Cuba e em seguida prorroga a vigência da lei que autoriza o bloqueio à revolucionária Ilha. Participa de reunião de cúpula com chefes de Estado de toda a América Latina, preconiza o início de uma nova época nas relações hemisféricas mas continua a fustigar e provocar os governos antiimperialistas nomeadamente os da Venezuela e da Bolívia. Revoga o plano de instalação do escudo anti-mísseis na República Tcheca e na Polônia mas anuncia simultaneamente que os Estados Unidos continuam comprometidos com um sistema de defesa com mísseis antibalísticos.
4 – Essencialmente, a situação internacional não registra progressos em favor da paz, no que diz respeito às ações dos Estados Unidos e seus aliados, nem à diminuição das tensões ou focos de conflitos.
5 – As chamas da guerra continuam a arder no Iraque sob ocupação das tropas estadunidenses. O anúncio do plano de retirada a longo prazo não contribuiu para estabilizar a situação. A presença de tropas de ocupação continua a provocar escaramuças militares e incidentes políticos.
6 – O presidente Obama defendeu a continuidade da chamada "guerra ao terrorismo", deslocando o seu centro para o Afeganistão. Desde o início do seu mandato, tem defendido que os Estados Unidos necessitam de mais tropas e recursos para ganhar a guerra no Afeganistão e confrontar a crescente ameaça da Al Qaeda na fronteira com o Paquistão. A Guerra do Afeganistão, herança maldita do governo de George W. Bush, vai convertendo-se cada vez mais na guerra de Obama. No último dia 20 de setembro, o presidente declarou que esta guerra não tem praz para acabar. "Eu não tenho um prazo final para a retirada" do Afeganistão, disse ele em entrevista a um programa televisivo.
Nesse mesmo dia, o jornal "The Washington Post" divulgou documento escrito pelo general Stanley McChrystal, comandante das forças norte-americanas e da OTAN no Afeganistão e enviado ao secretário da Defesa dos Estados Unidos, Robert Gates, em 30 de agosto, afirmando que os Estados Unidos precisam enviar mais tropas ao Afeganistão a fim de evitar uma derrota. "O fracasso em prover recursos adequados (mais tropas) resulta no risco de um conflito mais longo, mais mortes, custos mais elevados, e em última instância, uma perda de apoio político. Qualquer um desses riscos, por sua vez, pode resultar no fracasso da missão.
O general propõe acelerar o aumento do número de soldados. A meta atual é expandir o contingente de 92 mil para 134 mil até dezembro de 2011. Sua proposta é atingir esse nível até outubro de 2010.
7 – Seguindo o mesmo curso de primazia militar, os Estados Unidos têm quase um milhar de bases militares espalhadas pelo mundo. O novo governo propôs o aumento dos gastos militares, que correspondem a quase a metade dos gastos de todos os demais países somados. O Orçamento militar da Casa Branca foi incrementado em 4%, ao passo que foi aumentada também a verba destinada a financiar as guerras do Iraque e do Afeganistão (mais 75,5 bilhões de dólares para 2009 e mais 1e30 bilhões de dólares para o ano de 2010).
8 – Ultimamente passou para o centro da política do imperialismo norte-americano o aumento da presença militar na América Latina e no Caribe, como o demonstram o relançamento da Quarta Frota, no apagar das luzes do governo de George W. Bush e o acordo militar entre os Estados Unidos e a Colômbia que prevê a instalação de sete bases militares do da superpotência do Norte nesse país sul-americano. Por este acordo, as forças armadas estadunidenses utilizarão três instalações militares colombianas nas regiões de Malambo, na costa norte do Caribe, aolado da Venezuela, Palanquero, no rio Magdalena, a 100 km a noroeste de Bogotá, no centro do país, e Apiay, nas planícies orientais, próximo à fronteira brasileira . A estas se agregam as bases de Tolemaida no centro do país e Larandia, perto da fronteira com o Equador. A iniciativa prevê ainda a utilização da base naval da Baía de Málaga e a de Cartagena, na Costa do Caribe, por navios de guerra dos Estados Unidos. Com duração de dez anos, o acordo permitirá que os norte-americanos tenham 1.400 homens, entre civis e militares na Colômbia e contará com investimentos da ordem de 5 bilhões de dólares. Com muita propriedade, o líder cubano, companheiro Fidel Castro, chamou essas bases militares de "sete punhais no coração da América". O presidente venezuelano Hugo Chávez denunciou em termos contundentes:
"Queremos denunciar que este fato é parte de um plano político e militar, orquestrado para acabar com o projeto da União das Nações Sul-americanas (UNASUL), além de ser a maior ameaça neste momento histórico, para as infinitas riquezas que jazem em nosso continente, isto é: o ouro negro, nosso petróleo; o ouro azul, as grandes reservas acuiferas; o ouro verde, nossa Amazônia" (Carta do presidente Hugo Chávez aos presidentes dos países que compõem a UNASUL, 10 de agosto de 2009). No mesmo documento, o presidente da República Bolivariana da Venezuela assinalou: "Seria um grave erro pensar que a ameaça é apenas contra a Venezuela; dirige-se a todos os países do Sul do continente. Geopoliticamente estamos ao sul da hegemonia e é uma realidade que, transcendendo a tendência política dos governos do mundo, o problema da guerra diz respeito a toda a humanidade".
Os Estados Unidos reativaram a Quarta Frota de sua Marinha de Guerra num momento em que a América Latina ruma para a consolidação de um bloco regional que se caracteriza pelas posturas solidárias, independentes e soberanas, construindo fóruns regionais como o Mercosul, a Unasul, a Alba e o Conselho de Defesa Sul-Americano, afastando-se objetivamente da tutela estadunidense. Acrescente-se que em meio a este processo foi derrotada a tentativa dos Estados Unidos de impor à América Latina a criação de uma Área de Livre Comércio, a ALCA. O relançamento da Quarta Frota ocorre também num momento em que o Brasil realiza importantes descobertas petrolíferas na Costa, que o podem levar a ser um dos grandes produtores de petróleo do mundo. Trata-se de uma perigosa ameaça à soberania dos povos e países da região.
9 – A América Latina está vivendo, desde 1998, com a eleição do presidente venezuelano Hugo Chávez, uma etapa inédita e sua história política desde a primeira independência há 200 anos. Ao longo do século XX a região foi vítima do sistemático intervencionismo norte-americano. Nas décadas de 1960 e 1970 teve lugar o ciclo das ditaduras militares pró-estadunidenses. E nos anos 1980 e 1990, a região foi presa econômica, social e politicamente das engrenagens do neoliberalismo codificado no chamado Consenso de Washington.
Da eleição de Hugo Chávez em 1998 até o momento, ocorreram muitas vitórias políticas eleitorais, fruto da acumulação de forças pelos povos, que levaram ao poder coalizões de esquerda e centro-esquerda. Hoje, boa parte dos países da região são dirigidos por governos progressistas, democráticos, populares e antiimperialistas que estão contribuindo para alterar a geopolítica mundial. O sentido mais geral dos fenômenos em curso na região é a formação de uma corrente progressista e a acumulação de vitórias os povos e países em termos de independência, soberania, democracia, mecanismos de participação popular, justiça, desenvolvimento e progresso social.
Nesse quadro de avanços progressistas na América Latina, ressalta a celebração do 50º aniversário da Revolução Cubana, com a reafirmação dos valores de resistência, luta e empenho para construir uma nova sociedade.
Depositária da amizade e da solidariedade dos povos irmãos e dos governos progressistas da região, Cuba conquistou duas significativas vitórias políticas e diplomáticas nos últimos meses – seu acolhimento no sistema interamericano durante a Cúpula de Sauípe, realizada na Bahia, Brasil, em dezembro do ano passado, e a recente revogação do artigo que a excluía da OEA, durante a histórica reunião realizada em São Pedro Sula, Honduras, ainda sob os auspícios do governo do presidente Zelaya.
10 – Por isso, para o imperialismo norte-americano e a despeito da retórica e da habilidade do presidente Obama, está no centro das suas preocupações estratégicas recuperar o controle geopolítico da América Latina. É neste quadro que se inscreve a militarização – Quarta Frota e bases na Colômbia -, o golpe de Estado em Honduras e as tentativas das oligarquias reacionárias em diferentes países para criminalizar os movimentos sociais.
11 – Em todo este contexto, o Conselho Mundial da Paz reafirma sua condenação às estratégias guerreiras do imperialismo norte-americano e seus aliados, à militarização e todas as ameaças à paz. Exige a retirada das tropas de ocupação do Iraque e do Afeganistão e a libertação da Palestina, com a criação do seu estado nacional. Manifesta indeclinável solidariedade com os povos latino-americanos na luta por sua independência e soberania, pela democracia e a integração, contra a ingerência do imperialismo estadunidense, contra a Quata Frota e as bases militares na Colômba e em todos os países da região.
Toronto, Canadá, 2 de outubro de 2009.
Socorro Gomes
Presidente do Conselho Mundial da Paz