Sem argumentos e na contramão da história encravada pela luta anticolonial na Organização das Nações Unidas (ONU), autoridades marroquinas negam a existência de todo um povo, distorcem decisões e resoluções, deslegitimam a resistência e recorrem à intimidação e ao cerceamento para calar apelos e o apoio à libertação do Saara Ocidental. Algo disso fez o embaixador do Marrocos no Brasil em artigo no Globo nesta segunda-feira (27), repetindo motes da propaganda contra o povo saaráui.
Por Moara Crivelente*

A luta pela libertação do Saara Ocidental —ocupado e colonizado pela Espanha quando do esquartejamento da África entre as potências europeias em 1884/85— tem tomado força e, no Brasil, conquistado espaço, ainda que falte muito para ser abordada sistematicamente no Congresso, nas universidades ou até entre os movimentos sociais. Os sucessivos representantes da Frente Popular para a Libertação de Saguía el-Hamra e Rio de Ouro (Polisario) no país e as entidades solidárias têm travado árduas batalhas por trazer a causa ao conhecimento público e furar o cerco com que diplomatas marroquinos e de outros países tentam isolar os saaráuis.
O mesmo acontece em países da América Latina e Caribe que já reconhecem a República Árabe Saaráui Democrática (RASD), declarada pela Polisario após a debandada da potência colonial, em crise no fim da ditadura franquista, em 1976. Não surpreende então que a tática de bloqueio seja adotada num país como o Brasil, que não reconhece a RASD até que, segundo o Itamaraty, se alcance “uma solução mutuamente aceitável” através de um falido processo de paz ineptamente mediado pela ONU. Como se o direito à autodeterminação de povos colonizados fosse negociável.
Aqueles que têm abordado o tema recontam a história em diversos artigos e matérias, ações de apoio e contributos em discussões no Congresso, participando de conferências internacionais e visitando os campos de refugiados saaráuis no sul da Argélia. Assim testemunham em primeira mão ao mesmo tempo a tragédia e a resistência de um povo abandonado pela comunidade internacional. São esses os campos de que entre a condescendência e o desprezo trata o embaixador Nabil Adghoghi em seu artigo, colocando em questão o quê, mesmo? Seu artigo é intitulado “Um estelionato geopolítico” e se dedica a pôr em causa a história e a legitimidade popular da Polisario com um conjunto de falácias reiteradas por todo promotor do regime marroquino à exaustão, como se a repetição fosse convencer quem viu de fato o seu contrário.
Não há ilusões nem falta de evidências ou embasamento histórico e do apoio popular à Frente Polisario que a repetição da fórmula marroquina pretende “desmascarar”, tratando por mentiras tanto a luta e reivindicações quanto o próprio povo saaráui como um todo. É evidente que falta argumentos da parte marroquina.
Negar a existência do povo oprimido como povo é de praticamente todo regime colonizador. Dos mais conhecidos e correntes se pode citar Israel, expoente do sistema de ocupação, despojo, expulsão e repressão da população cujo território busca tomar, a Palestina. Deslegitimar a resistência como “instrumento do inimigo” —no caso marroquino, a Argélia— ou vilipendia-la também são táticas que buscam distorcer a história, como fez o embaixador em sua peça, provavelmente em resposta ao artigo publicado no mesmo meio pelo jornalista Hélio Doyle, da Associação de Solidariedade e Pela Autodeterminação do Saara Ocidental (ASAHARA), após a sua participação no 15º Congresso da Frente Polisario em dezembro.

Sob o atual reinado de Mohamed VI, essas táticas são de grande incoerência. Embora o embaixador marroquino ponha em causa a legitimidade da Frente Polisario, no passado, o mesmo rei Hassan II que orquestrou a ocupação do Saara Ocidental em 1975 através de um acordo clandestino com a Espanha e da violenta tomada do território reconheceu a Polisario tacitamente e aceitou o referendo. O regime marroquino reuniu-se com a Polisario em 1989 para iniciar a negociação do cessar-fogo que entraria em vigor em 1991 e da subsequente realização do referendo, este até hoje pendente devido às manobras do Marrocos e à inação da ONU.
Para somar à injúria, desde então está na região a Missão das Nações Unidas para a Realização do Referendo no Saara Ocidental (MINURSO), há três décadas garantindo ao povo saaráui sua impotência, desperdiçando esperança, vidas e um orçamento milionário.
Desde 1963 a ONU considera o Saara Ocidental um território não-autônomo pendente de descolonização, em acordo com a histórica resolução 1514 (XV) de 1960, fruto da luta dos povos por libertação nacional. Em 1965, a Assembleia Geral demandava à Espanha a descolonização do Saara Ocidental; logo, em resoluções anuais de 1966 a 1973, instou à solução da questão através de um referendo. Quem escolheria seu destino seria a população saaráui, forçosamente confinada pelo arbitrário delineamento de fronteiras coloniais que cercearam seu movimento como nômades e que tem, sim, ao contrário do que alega o Marrocos, heranças culturais e políticas reconhecidas, como se vê inclusive no relatório da Comissão da ONU para a Descolonização que visitou a região em maio/junho de 1975.
O Marrocos alega que o território fazia parte do seu Reino antes da captura pela Espanha, mas o Tribunal Internacional de Justiça concluiu, também em 1975, numa consulta encomendada pela Assembleia Geral da ONU, que não havia evidências da soberania marroquina sobre o Saara Ocidental, ainda que certos grupos saaráuis tivessem relações com o sultão, nem que se tratava de “terra de ninguém” antes dos anos 1880.
Arbitrariamente, o Marrocos ignorou o que não lhe interessa e instigou uma gigante onda de migração de centenas de milhares de colonos na chamada “Marcha Verde”, que o Conselho de Segurança da ONU “deplorou” em sua resolução 380 de 1975, instando o Marrocos a “retirar imediatamente do Saara Ocidental todos os participantes da marcha”. Enquanto isso, o Marrocos bombardeava a população saaráui e a Mauritânia participava da invasão. Deste episódio criminoso resulta o êxodo massivo de saaraúis em busca de refúgio na vizinha Argélia, onde até hoje seus descendentes esperam pelo direito de retornar.

Mas o início da luta saaráui data de muito antes, com o exemplo da organização de sucessivas campanhas de estudantes contra a potência colonial espanhola. E foi em junho de 1970, há meio século, que com o levante de Zemla, na capital saaráui El-Aiun, a Espanha apostaria na brutalidade da repressão ao movimento nacional, com o primeiro desaparecimento forçado, de Mohammad Basiri, cujo paradeiro até hoje é desconhecido. Entre as iniciativas lideradas por Basiri nos anos 1960 estão a fundação do jornal nacionalista Al-Shihab e, a seguir, o Harakat Tahrir (“Movimento de Libertação”).
A Frente Polisario nasce da organização do movimento de libertação nacional em maio de 1973. Nem a Polisario, portanto, nem a população saaráui refugiada ou no exílio em diversos outros países são invenções da Argélia, embora contem, sim, com o vital apoio do país —histórico defensor da autodeterminação inclusive devido à sua própria luta anticolonial contra a França.
Do outro lado, o Marrocos conta com o apoio da própria França, a negligência da Espanha, a manipulação dos Estados Unidos, o respaldo de membros da Liga Árabe e a cumplicidade de vários outros no rentável espólio dos recursos do povo saaráui. Já a RASD é membro da União Africana desde os anos 1980 e conta com o apoio essencial de Cuba e o repaldo de outros países latino-americanos e caribenhos e potências africanas como a África do Sul, Namíbia, Angola e, até 2011, a Líbia. Por isso, o retrato pintado pela propaganda marroquina é no mínimo incompleto e, no extremo, desonesto.
Na pendência da promessa de descolonização, a brutalidade da ocupação e colonização marroquina da maior e mais estratégica parte do Saara Ocidental e as quase cinco décadas de refúgio em condições precárias no deserto, onde ainda assim os saaráuis têm consolidado as instituições de uma República pronta para a independência, a paciência se esgota.
Embora tenham baixado as armas em 1991 para dar chance à diplomacia, os saaráuis não hesitariam em, confrontados com o fracasso da ONU e da comunidade internacional em cumprir a promessa, voltar ao combate pela sua liberdade. Será o resultado do teste da ONU como entidade capaz de vencer sua instrumentalização pelas potênciais e fazer valer o direito dos povos à autodeterminação. Mas o tempo urge.
*Doutoranda em Política Internacional e membro da Direção do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)