Solidariedade e interesses. Por Zillah Branco

A solidariedade maior tem aquele que apenas ajuda o outro sem visar compensações, nem mesmo, no Juízo Final. Quase sempre ocorre com pessoas que nada têm, que sofrem ou sofreram muito, que se irmanam com os que estão sofrendo. As formas de sofrimento são as mais diversas: por carência de recursos materiais ou por sensibilidade ao que acontece com os outros. E há milhões de pessoas com esta capacidade. Não fossem elas e os Estados não poderiam exercer as suas funções de segurança social, atendimento médico, salvamentos em caso de desastre, apoio a quem está debilitado. Mesmo existindo os serviços públicos adequados, se os cidadãos não tiverem iniciativa solidária, nada funciona permanecendo enroscados nas burocracias e nas incompetências apesar dos recursos disponíveis.
As pessoas desinteressadamente solidárias, que agem por amor e não à procura de compensações, são capazes de agir com êxito sem os recursos necessários, mobilizando a ajuda de outros com menos capacidade de iniciativa. Abre caminho à força da participação popular. Em torno delas reúnem-se outros movidos por interesses diversos: religiosos, morais, promocionais, terapêuticos, de aprendizagem e até mesmo para introduzir uma forma de poder que seja útil a si ou à organização a que se filia. Assim é a humanidade, mas se a liderança desta rede de solidariedade for exercida por amor ao próximo, por solidariedade com os mais carentes, os diversos interesses que movem os participantes se diluem no conjunto. Este foi o exemplo de Zilda Arns que desde criança quis ser missionária e, para isso, formou-se como médica pediatra e sanitarista, e criou a Pastoral da Criança no Brasil e em outros países.

Quando adolescente declarou a sua vocação de missionária e o pai recomendou que então fizesse um curso universitário que fortalecesse as suas capacidades de comunicação para transmitir aos mais carentes os ensinamentos necessários. Era a visão dos catequistas, que ensinam a “viver melhor”. Ela preferiu criar uma ferramenta para agir melhorando as condições de vida – como médica. Assim criou uma ponte entre os conhecedores da ciência e os deserdados sociais, criando a farinha fortificante com os produtos alimentares mais baratos que ensinou às mães a agregarem, pouco a pouco, à mamadeira, salvando milhões de criancinhas subnutridas. Nesse dialogo participado, salvou também milhares de mães levando-as para o caminho da cidadania para exigirem a proteção social do Estado.

Com o apoio da CNBB criou a Pastoral da Criança no Brasil e expandiu o seu exemplo pelo mundo. Os milhares de agentes da Pastoral são moradores de bairros pobres que reúnem uma dezena de famílias desamparadas à sua volta, multiplicando a participação da médica por todo o território nacional. È uma “rede de solidariedade” dizia Zilda Arns, que recebe pessoas de todos os credos religiosos e filosóficos e trata tanto de famílias de trabalhadores como de traficantes ou qualquer outra situação. É humanista apenas.

Na organização dessa instituição fundamental para o desenvolvimento das crianças, das mães, dos cidadãos mais pobres, ensinou a fazer alianças – de solidariedade – com todos os que quiserem participar, por amor ou por interesse promocional. As doações são feitas de pequenas quantias ou de gestos afetivos até grandes ofertas que ricos empresários aplicariam em publicidade. Estabelece a unidade de setores sociais adversos, de vocações contrárias, de crenças diferentes, em torno da participação efetiva pelo desenvolvimento nacional. Na sua linguagem religiosa recomendava a tolerância, em uma interpretação política entende-se como a capacidade de colocar os objetivos coletivos acima das aptidões individuais. É o ponto de encontro entre o que se considera um missionário religioso e um militante social.

O terremoto que devastou o Haiti apresentou ao mundo globalizado a necessidade de promover a solidariedade internacional. A humanidade, no seu egoísmo natural histórico, só desperta diante de catástrofes que podem se repetir em qualquer lugar. Se a solidariedade internacional existisse organizada em defesa da PAZ MUNDIAL ha mais tempo, quando aquele país produzia uma agricultura avançada que apenas enriquecia a França colonizadora e, depois, quando aquela população conquistou em 1804, pela primeira vez na América Latina, a independência nacional, as ambições imperiais dos Estados Unidos e da Europa não teriam minado o processo de desenvolvimento do Haiti. Mas, por interesse político, deram apoio ao governo ditatorial (1957 a 1985) de François Duvalier, o Papa Doc, e ao seu filho, que agiram política e criminosamente como o terremoto de 2010, esvaindo a riqueza para uns poucos e condenando as famílias paupérrimas a sacrificarem a sobrevivência dos filhos mais débeis para poderem salvar os que tinham chance de viver.

Nestes dois séculos a humanidade aprendeu os valores da cidadania com as experiências históricas concretas do socialismo e com o estudo aprofundado das ciências e das ideologias. Atingiu um nível mais alto de conhecimento que lhe permite eliminar os velhos preconceitos, os medos, as pretensões individualistas, os egoísmos, e somar os esforços de missionários e militantes sociais na reconstrução das sociedades.
A consciência de cidadania é uma lente que corrige a miopia causada pela ignorância que elites poderosas antes impunham à humanidade dependente.

Existem objetivos diferentes, até contraditórios, entre os que oferecem a sua solidariedade. Importante será preservar a liderança humanista e desinteressada no comando da organização da ajuda internacional. A tendência colonizadora ou imperialista hoje está em decadência no plano ético, mas ainda é forte no uso das armas e estratégias de dominação no plano político. O exemplo de Cuba é, mais uma vez, um grande ensinamento, aos povos, de total solidariedade. Além dos muitos médicos e professores com que contribui em todas as nações necessitadas, agora ofereceu o seu espaço maritmo e aéreo para que os Estados Unidos possa mandar ajuda ao Haidi por um caminho mais curto. E não se pode esquecer que os Estados Unidos bloqueiam o relacionamento de Cuba com todo o mundo submetido ao imperialismo, há meio século, para boicotar o desenvolvimento de Cuba. Este desprendimento é exemplar.

A mídia, por mais sensacionalismo que promova, é obrigada a mostrar a realidade crua do esforço solidário humanista que se destaca face às ambições mesquinhas dos que visam extrair benefícios da tragédia. As cenas gravadas por celulares, transmitidas pela internet revelam muito mais que o desespero dos famintos que a televisão repete. Mostram a iniciativa do povo na participação incansável do socorro, o sacrifício de cavar com as mãos as paredes que soterraram alguém que apenas geme sob os escombros. A participação de todos em busca de sinais de vida permitiram que depois de cinco dias mais de 70 pessoas ainda fossem salvas. Os sentimentos mais puros, considerados ingênuos, sobressaem como valores humanos maiores a serem prezados no controle da s estratégias políticas e das organizações que reestruturam a sociedade. E são esses heróis que explicam à mídia que o povo do Haiti é capaz de se organizar para reerguer o país tantas vezes oprimido por invasores e destruído pelos desastres naturais. Agora precisam de apoio material, respeito e PAZ.

Zillah Branco

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