Entre a paz e catástrofe: Por que a ONU instituiu um Dia de Solidariedade com o Povo Palestino

Em 1977, a Assembleia Geral das Nações Unidas, manifestando grande frustração com a situação na Palestina e em Israel, apelou pela instituição de um Dia Internacional de Solidariedade com o Povo Palestino: 29 de novembro. Quando se trata de compreender a questão, que vai sendo apresentada como um “conflito intratável”, deve-se ancorá-la na História. Isto faz a Assembleia Geral para defender os direitos do povo palestino, usando como referência a data da proposta de um Plano de Partilha da Palestina entre árabes e judeus, adotada pela Resolução 181 (II) de 29 de novembro 1947.

Por Moara Crivelente*

Na primeira parte da resolução 32/40 de 1977, a Assembleia Geral expressava preocupação “pelo fato de não ter sido conquistada nenhuma solução justa para o problema da Palestina e que, em consequência, tal problema siga agravando o conflito no Oriente Médio, do qual é elemento central, e comprometendo a paz e a segurança internacionais.” Também reafirmou que o estabelecimento de uma paz justa e duradoura depende, entre outras coisas, de “uma solução justa ao problema da Palestina, com base na realização dos direitos inalienáveis do povo palestino, incluindo o direito ao retorno [dos refugiados] e à independência e soberania nacionais na Palestina, em conformidade com a Carta das Nações Unidas.” 

Mas dez anos anos, em 1967, Israel certificou-se de impedir a realização desses direitos –e da paz na região– ao ocupar militarmente o restante da Palestina e outros territórios do Egito, da Síria e do Líbano –a Cisjordânia, Faixa de Gaza, Jerusalém, a Península do Sinai, as Colinas de Golã e as Fazenda Shebaa. Estabeleceu, então, a mais longa ocupação militar: excluindo o Sinai, já devolvido ao Egito, os restantes territórios, as populações e os seus recursos estão há cinco décadas não só sob o controle como sob a colonização e a exploração israelenses.

A segunda parte da resolução de 1977 aponta para a importância das conclusões do relatório do Comitê sobre o Exercício dos Direitos Inalienáveis do Povo Palestino, “reconhecendo a necessidade de uma disseminação o mais ampla possível da informação sobre os direitos inalienávies do povo palestino e sobre os esforços das Nações Unidas pela promoção e conquista desses direitos.” A síntese desses direitos inalienáveis reaparece em inúmeras resoluções adotadas anualmente: a autodeterminação, a independência nacional e a soberania, assim como o direito dos palestinos a retornar aos seus lares e propriedades. É a isso que o Dia de Solidariedade deve fazer referência.

Portanto, o propósito da instauração de uma data anual como essa é manter o tema e a pendência de uma saída justa não só na agenda das reuniões da Assembleia Geral, mas na agenda política internacional  –evitando, assim, que este se torne mais um conflito esquecido. É também o chamado e o compromisso com a disseminação de informação e a ação pelos direitos do povo palestino, fundamental para a realização da paz justa e duradoura.

Mas é precisamente a negligência, ou mais precisamente, o ataque frontal contra os direitos do povo palestino, o que continua postergando a paz. Setenta e seis anos depois da adoção do Plano de Partilha pela ONU, aquela síntese dos direitos dos palestinos traz pistas fulcrais para compreender a raiz do problema, com destaque para a não realização da autodeterminação. Um problema em que a própria ONU está implicada.

O Plano de Partilha é resultado dos trabalhos de uma Comissão de Inquérito composta por britânicos e estadunidenses, em 1946, cujos países passam a dividir o respaldo ao movimento sionista, até que os Estados Unidos tomam este papel político do Reino Unido, nos estertores da Segunda Guerra Mundial. O objetivo da comissão era “examinar a questão dos judeus europeus e […] revisar o Problema da Palestina sob a luz daquele exame”. Ou seja, enquanto o Reino Unido e os EUA disputavam o controle da região e dos seus recursos, em aliança com sionistas e com elites árabes, a comissão visava buscar solução para o realojamento de cerca de 100 mil refugiados judeus sobreviventes do Holocausto –e uma solução para a persistente e violenta discriminação europeia contra a população judaica. Porém, tendo sido evidenciado que o refrão “Uma terra sem povo para um povo sem terra” era uma falácia, uma vez que a Palestina tinha um povo e que este povo resistia, o segundo propósito da comissão era o de lidar com este “problema”. 

Esq.: Judeus celebram o fim do Mandato Britânico e a criação de Israel. Dir.: Refugiados palestinos deixam as suas vilas e a Palestina

E assim, embora a comissão registre que os representantes palestinos rejeitaram veementemente a Partilha como a materialização de um projeto colonial, imperialista e supremacista, o plano foi proposto e adotado pela ONU, mobilizando a justa comoção internacional diante dos horrores do Holocausto, como uma solução imediatista ou fictícia que provocou novos e sucessivos horrores. 

A não autodeterminação palestina

Esta seria a segunda vez que a autodeterminação do povo palestino era atropelada. Derrubado o Império Otomano na Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido e a França dividiram a região entre si, tendo o primeiro ocupado a Palestina em 1916. Ao invés de garantir a prometida independência dos povos árabes, França e Reino Unido conseguiram da Liga das Nações, antecessora da ONU, um Mandato para governar provisoriamente as respectivas zonas ocupadas. O Mandato Britânico na Palestina durou mais de duas décadas e, para além de garantir o controle do império sobre a região, o seu propósito era cumprir outra promessa, aquela feita ao Movimento Sionista de estabelecer, na Palestina, um “lar para o povo judeu”. 

A resistência palestina ao processo de despojo, enfática já na década de 1930, foi brutalmente reprimida por soldados britânicos e a seguir confrontada pelas milícias sionistas. Os relatórios das comissões de inquérito britânicas mostram que as autoridades estavam cientes dos receios dos palestinos e buscaram limitar a imigração e aquisição de terras por judeus, mas o processo de colonização já estava em estágio avançado. As milícias sionistas perpetraram ataques a escritórios da administração britânica e à população palestina, destruindo cerca de 500 vilas, matando cerca de 15 mil pessoas e expulsando mais de 750 mil, a maioria jamais permitida a retornar, entre 1947 e 1949. A população de refugiados palestinos hoje soma cerca de seis milhões de pessoas.

E é neste contexto de genocídio que as autoridades britânicas se retiram e que nasce o Estado de Israel, em 1948. É a isto que os palestinos chamam de Nakba, ou “catástrofe”, em árabe, um processo ininterrupto de tentativa de eliminação de um povo ou da sua dominação completa.  

É também neste contexto que o atual momento deve ser enquadrado para se condenar o massacre televisionado na Faixa de Gaza, com cerca de 15 mil palestinos mortos em menos de dois meses de guerra, e a violência redobrada na Cisjordânia, onde mais de 200 pessoas já foram assassinadas por colonos ou soldados israelenses e milhares foram detidas arbitrariamente. Não se trata de episódios desconexos como se o restante do tempo, quando Israel não está despejando bombas sobre Gaza, fosse de calmaria sob o regime de ocupação militar e colonização. O cerco completo a Gaza foi instaurado há 15 anos; antes de outubro, já era recordista número de mortes e detenções em 2022-2023 e seguia em alta a demolição de casas palestinas como medida de punição coletiva ou o confisco de terras para anexação por Israel, entre outras calamidades do cotidiano sob ocupação.

É isso o que precisa ser destacado, neste Dia de Solidariedade e em todos os outros: enquanto a Palestina e o povo palestino não forem livres, não haverá paz.

*Moara Crivelente é cientista política e integra a Direção Executiva do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (CEBRAPAZ).