O limite da extensão temporal de uma ocupação militar não é claramente definido pelo direito internacional, nem sua prática, criminalizada. Assim, Israel ocupa a Palestina há 50 anos e o Marrocos ocupa o Saara Ocidental há 42. Nestes casos, o encarceramento massivo é uma das táticas de repressão da resistência que persiste e as cortes militares, um instrumento para garantir sua eficácia, num perpétuo estado de exceção.
Por Moara Crivelente*
De acordo com um relatório das cortes militares de Israel citado em 2011 pelo diário Haaretz, quase todos os casos levados a julgamento terminaram em condenação (99,74%). O número diz algo claro aos preocupados com a garantia de julgamentos justos e imparciais, mas que não podem ignorar que são processos impostos à população ocupada pela potência ocupante.
No momento em que cerca de mil prisioneiros palestinos completam uma greve de fome de 40 dias contra as condições do seu encarceramento – imediatas, nas celas e sessões de interrogatório, e estruturais, sob a ocupação israelense – e em que mais de 20 ativistas saráuis continuam submetidos a um processo parcial, atualmente alternativo a um julgamento militar já revogado, as cortes militares devem ser expostas pelo serviço que prestam à opressão e à violação sistemática dos direitos humanos.
Em ambos os casos, pretextos sobre uma situação de exceção e a ocupação militar evidente, mas negada pelas próprias potências ocupantes, entrelaçam-se para ditar o cotidiano e as condições da resistência aos povos sob ocupação.
Em diferentes informes, os sucessivos relatores especiais para a independência de juízes e advogados do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, Leandro Despouy e Gabriela Knaul, apontaram “graves preocupações com a realização da justiça através de tribunais militares, em termos de acesso à justiça, impunidade por abusos passados dos direitos humanos, a independência e imparcialidade dos tribunais militares e o respeito pelos direitos a julgamentos justos para os acusados,” lê-se na nota do secretário-geral da ONU para a Assembleia Geral em 2013.
A preocupação é agravada quando o foco incide sobre a imposição de julgamentos em cortes militares ou de emergência a civis. De acordo com a relatora especial Gabriela Knaul, a prática é frequentemente apresentada sob o pretexto da segurança nacional, o estado de emergência ou o contraterrorismo, “o que viola todos os padrões internacionais e regionais”. Os padrões, sim, embora a prática seja reiterada em diversos casos.
“Tratados internacionais de direitos humanos não abordam explicitamente o julgamento de civis por tribunais militares. Entretanto, vários instrumentos de direito brando [não vinculantes] e a jurisprudência de mecanismos internacionais e regionais mostram que há uma firme tendência contrária à extensão da jurisdição penal de tribunais militares a civis”, continua a relatora.
Knaul lembra ainda que a Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos em vigor desde 1976 — e da qual ambos Marrocos e Israel são signatários — tampouco proíbe o julgamento de civis em cortes militares ou especiais, mas demanda que tais julgamentos estejam em completa conformidade com os requisitos do seu Artigo 14 (na imagem acima) e que suas garantias não sejam limitadas ou modificadas por causa do caráter militar ou especial da corte em questão.
Os julgamentos militares, segundo a Convenção, “devem ser excepcionais”, ou seja, “os Estados parte devem demonstrar que o recurso a tais procedimentos é necessário e justificável por razões objetivas e sérias e por que, devido à classe específica de indivíduos e ofensas, as cortes civis normais são incapazes de realizar os julgamentos.”
Isso porque, de acordo com Knaul, o julgamento de civis em tribunais militares prejudica a realização da “justiça equitativa, imparcial e independente e é frequentemente justificado pela necessidade de permitir procedimentos excepcionais que não correspondem aos padrões normais de justiça.” Embora haja quem, de forma crítica, considere incompleta a definição dos “padrões normais de justiça” que não considere precisamente a possibilidade da aplicação da “exceção”, o alerta é relevante.

Poder-se-ia dizer que pelas brechas – embora não sejam exatamente brechas, pois são possibilidades expressas e “emergentes” – passaram as sentenças contra nove de 25 ativistas saráuis capturados num protesto pacífico em 2010 a prisões perpétuas com base em confissões obtidas através de torturas físicas ou psicológicas, ou sentenças de 12 anos a um garoto de 13, entre outros menores de idade palestinos, com base em confissões feitas em condições de extremo estresse ou tortura.
No caso do Marrocos, a pressão internacional fez com que em 2014 reformas aprovadas no Parlamento acabassem com a jurisdição de cortes militares sobre civis, revogando o julgamento dos 25 ativistas saráuis e levando-os a novo julgamento, ainda parcial e obscuro, segundo observadores internacionais, em uma corte civil do reino marroquino.
Mesmo assim, de acordo com a organização Front Line Defenders, Mbarek Daoudi foi detido em setembro de 2013 e, apenas em março de 2015, sentenciado ainda por uma corte militar à prisão, sentença depois estendida ao menos duas vezes — a última, em dezembro de 2015, quando lhe foi imposta mais uma pena de cinco anos. Em outubro de 2016, seu filho Mohamed foi detido e torturado, pelo que entrou em coma. Dois dias depois, sem qualquer acusação, foi liberado, sem receber tratamento médico.
Na Palestina ocupada por Israel desde 1967 vigora um regime militar composto inclusive por tribunais e uma vasta rede prisional, dentro e fora do território ocupado, em Israel, para onde os detidos palestinos são ilegalmente transferidos. Desde o início da ocupação, após a Guerra de Junho, mais de 1.700 ordens militares foram emitidas e outras restam do Mandato Britânico findo em 1947, penalizando ações como o lançamento de pedras contra soldados ou veículos blindados em protestos. Desde 1967, de acordo com as organizações palestinas, mais de 800 mil homens, mulheres e menores de idade foram encarcerados pelas autoridades israelenses.
Prisões, centros de detenção e interrogatório e Cortes Militares de Israel.
Mapa: Associação de Apoio aos Prisioneiros e Direitos Humanos “Addameer”
Nesse regime também passam evidências ditas secretas admissíveis nos julgamentos aos quais muitos acusados chegam após um longo período encarcerados, sem acesso à defesa. No caso palestino, já houve quem passasse oito anos detido sem sequer ser acusado, sob a chamada “detenção administrativa”. E estes são exemplos dos amplos poderes autoconcedidos ao regime militar.
São tantas as ressalvas e exceções que não surpreende o fato de as potências ocupantes, como é o caso de Israel e do Marrocos, ou os “soberanos que declaram estado de exceção”, como os Estados Unidos e seus aliados na global “guerra contra o terror”, encontrarem todo o tipo de subterfúgios e interpretações para justificar suas práticas abusivas, instrumentalizando, e não ignorando, o direito internacional.
Do centro estadunidense de tortura e detenção encravado em Guantánamo contra a vontade do povo cubano até Abu Ghraib, no Iraque, as cortes militares de Ofer, de Israel, e a da capital marroquina, Rabat, o discurso sobre a ameaça é semelhante, para justificar abusos graves, reiterados, sistemáticos e, com isso, estender no tempo as condições estruturais a que servem: o enraizamento da política imperialista a nível mundial, a ocupação e anexação territorial e a submissão de povos inteiros, ou sua rendição. Diante da insistência na resistência, porém, a opressão e violações sistemáticas perpetuam-se, mas também se expõem cada vez mais por sua ilegitimidade.
*Moara Crivelente é cientista política e diretora de Comunicação do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)