ARTIGO | Mapa do IBGE erra ao representar Saara Ocidental como território marroquino e deve ser reparado

Por Moara Crivelente*

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem um novo mapa-múndi. Ao tempo em que pode contribuir para proliferar representações não eurocêntricas do planeta, o mapa comete o gravíssimo erro geopolítico de representar o Saara Ocidental, no noroeste africano, como parte do Reino do Marrocos. Urge reparar esta injustiça. Além disso, o IBGE, que tem buscado uma inserção internacional, também pode buscar estabelecer cooperação com o representante do povo saarauí, a Frente Polisario.

Foto: Moara Crivelente

O Saara Ocidental consta da lista da Organização das Nações Unidas (ONU) de territórios não-autônomos e está pendente de descolonização desde a década de 1960, quando outras nações africanas conquistaram a sua libertação e a independência. A antiga potência colonial, Espanha, comprometeu-se com a ONU e a população saarauí a promover a descolonização e a realizar um referendo para consultar a população sobre o seu destino político, mas passadas seis décadas, tal medida ainda não foi adotada.1

O território era disputado pelo Marrocos e a Mauritânia, mas o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) emitiu um parecer em 1975 afirmando não haver evidências que corroborem as suas reivindicações.2 Mesmo assim, ambos invadiram o Saara Ocidental e, embora a Mauritânia tenha se retirado em 1979, o Marrocos segue ocupando, anexando e colonizando a maior porção do território, oprimindo o povo e espoliando os seus recursos naturais. Entre eles está o fosfato, que chega até o Brasil, na produção de fertilizantes agrícolas.3

Parte da população saarauí está refugiada no deserto argelino há quase cinco décadas, enquanto o seu representante, a Frente Polisario, continua lutando pela libertação nacional. Um cessar-fogo foi alcançado em 1991,4 mas o protelamento do processo diplomático permitiu ao Marrocos continuar colonizando e explorando o Saara Ocidental, até que o cessar-fogo foi rompido em 2020.5

Por outro lado, os saarauís têm consolidado as instituições do seu estado, a República Árabe Saarauí Democrática (RASD),6 que é reconhecida por dezenas de países —inclusive quase todos os nossos vizinhos latino-americanos— e é um membro fundador da União Africana. Do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (CEBRAPAZ), tivemos a honra de visitar a região diversas vezes e observar que os saarauís continuam comprometidos com a libertação e conquistam importantes avanços em prol da emancipação social, como na promoção da educação universal e a afirmação do papel protagonista das mulheres.7 Do outro lado de um muro de 2.700 km de extensão, com bases militares e milhões de minas terrestres,8 no território ocupado pelo Marrocos, está a outra parte da população, que busca resistir à anexação, à colonização e a violações sistemáticas dos seus direitos humanos, inclusive a repressão, o desaparecimento forçado e a tortura.9

A postura do Brasil tem sido a de afirmar que a conclusão deste conflito deve ser alcançada diplomaticamente e em linha com as propostas da ONU. Entretanto, é passada a hora de o Brasil reconhecer a RASD, assim como reconheceu o Estado da Palestina, em 2010. Cumprindo o anseio de contribuir para construir a paz e a justiça internacional, cabe ao Brasil rechaçar a violação cometida pelo Marrocos, na sua afronta a um princípio basilar da Carta das Nações Unidas, que é a autodeterminação dos povos.

Por isso, assim como temos demandado o fim do comércio de recursos espoliados dos saarauís pelo Marrocos, demandamos ao IBGE que repare o equívoco no mapa-múndi. Também propomos que o Instituto consulte a delegação da Frente Polisario no Brasil para estabelecer parcerias no âmbito da cooperação Sul-Sul, uma vez que o Saara Ocidental é um território atlântico da comunidade de países africanos e árabes com quem o Brasil tem fortalecido laços de amizade. Enquanto continuamos defendendo o reconhecimento da RASD, urgimos pela adoção de medidas concretas como estas que coloquem o Brasil ao lado desta justa causa por autodeterminação e libertação nacional.

*Moara Crivelente é cientista política e diretora de questões coloniais e neocoloniais do CEBRAPAZ


NOTAS:

  1. Resolução 2072 (XX) de 1965 e Resolução 2229 (XXI) de 1966 da Assembleia Geral da ONU. Estas e outras referências podem ser encontradas em: Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental – MINURSO. Chronology of the Events [Cronologia dos Eventos]. Disponível em: https://minurso.unmissions.org/chronology-events  ↩︎
  2. Tribunal Internacional de Justiça. Western Sahara – Overview of the Case [Saara Ocidental – Resumo do Caso]. Disponível em: https://www.icj-cij.org/case/61  ↩︎
  3. Crivelente, M. 2020. “Chega ao Brasil navio com fosfato do Saara Ocidental espoliado pelo Marrocos”. CEBRAPAZ. Disponível em: https://shorturl.at/vBZd5; Giovanaz, G. 2021. “Fertilizantes produzidos no Brasil contêm fosfato roubado do Saara Ocidental”. Brasil de Fato. Disponível em: https://shorturl.at/g97TH. ↩︎
  4. Conselho de Segurança das Nações Unidas, Resolução 690 de 1991, The Situation Concerning Western Sahara [A situação do Saara Ocidental]. Disponível em: https://shorturl.at/C7iwL; Assembleia Geral das Nações Unidas, Resolução 77/133 de 2022, The Question of Western Sahara [A questão do Saara Ocidental]. Disponível em: https://shorturl.at/hDVGj  ↩︎
  5. Organização das Nações Unidas. Relatório do Secretário-Geral sobre a Questão do Saara Ocidental (A/77/506), 4 de outubro de 2022. Disponível em: https://shorturl.at/iIEL3; Crivelente, M. & Estrada, R. 2020. “O retorno da Guerra no Saara Ocidental: o que você precisa saber”. CEBRAPAZ. Disponível em: https://shorturl.at/9uB9d  ↩︎
  6. Crivelente, M. 2020. “Entidades saúdam decisão saarauí de reconstruir território liberado do Saara Ocidental”. CEBRAPAZ. Disponível em: https://shorturl.at/rptVL  ↩︎
  7. União Africana. 2022. Saharawi Arab Democratic Republic becomes the 43rd African Union Member State to ratify the Protocol on Women’s Rights [República Árabe Saarauí Democrática torna-se o 43º membro da União Africana a ratificar o Protocolo sobre Direitos das Mulheres]. Disponível em: https://shorturl.at/c2Fgd  ↩︎
  8. United Nations Mine Action Service (UNMAS). Territory of Western Sahara. Disponível em: https://www.unmas.org/en/programmes/westernsahara  ↩︎
  9. Assembleia Geral das Nações Unidas. 2023. Taking Up Question of Western Sahara, Some Speakers in Special Decolonization Committee Call for Urgent Self-Determination Referendum, Voice Concern over Human Rights Abuses [Tratando da Questão do Saara Ocidental, Alguns Oradores na Comissão Especial de Descolonização Instam ao Referendo Urgente de Autodeterminação, Expressão Preocupação com Violação dos Direitos Humanos]. https://press.un.org/en/2023/gacol3370.doc.htm  ↩︎