ARTIGO | Poder e desespero

Por Gustavo Guerreiro*

O recente ataque israelense ao campo de refugiados de Nuseirat, que resultou na morte de 274 palestinos e feriu 698, escancara a brutalidade desproporcional e a decadência moral na conduta militar de Israel. A superioridade bélica e tecnológica de Israel expõe severamente sua inferioridade moral. Israel, com suas capacidades militares avançadas, executa operações que causam grande sofrimento e perda de vidas entre civis palestinos, especialmente crianças, demonstrando um abismo moral entre o poder tecnológico militar de Israel e os princípios humanitários.

Foto: AFP

A analogia com Jano, o deus romano de duas faces, ilustra bem essa dicotomia. Israel apresenta uma face da superioridade tecnológica e bélica, enquanto a outra revela uma derrota ética profunda. A relação entre elas é extremamente dialética, uma vez que Israel não combate um exército, mas executa uma política de limpeza étnica contra civis desarmados. A euforia dos militares israelenses em relação às explosões que destroem vidas inocentes é um reflexo dessa monstruosidade de duas caras.

No ataque surpresa ao campo de refugiados de Nuseirat, o Ministério da Saúde palestino relatou que as tropas israelenses mataram 64 crianças e feriram 153. As vítimas sobrecarregaram o único hospital remanescente na região central de Gaza, o Hospital dos Mártires de Al-Aqsa. O ataque, conduzido à luz do dia, maximiza as mortes de civis palestinos, como observado por grupos humanitários. Kenneth Roth, ex-diretor da Human Rights Watch, criticou a operação por não tomar precauções para evitar danos civis, algo inconsistente com os tratados internacionais que regem a proteção aos civis no caso de conflitos armados.

Os meios de comunicação ocidentais, como o The New York Times, enquadraram o massacre como uma missão inteligente para libertar reféns, ignorando as centenas de palestinos mortos e feridos. A narrativa predominante ignorou os milhares de palestinos aprisionados sem acusação em campos de tortura, reforçando a invisibilidade das vítimas palestinas. De forma hedionda, a Casa Branca emitiu uma declaração descrevendo o massacre como uma “operação bem-sucedida” e “ousada”. A declaração do Conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, que não menciona as vítimas palestinas, exemplifica a desumanização e indiferença às vidas perdidas.

Testemunhas palestinas descreveram a operação como angustiante e indescritível. As forças israelenses cercaram o complexo e impediram que as pessoas saíssem enquanto lançavam bombas e atiravam em palestinos à vista. Em uma reportagem de Sharon Zhang para o site de mídia alternativa “Thruthout.org” Tawfiq Abu Youssef, de 11 anos, disse que ficou horas debaixo dos escombros, sem esperança de sobrevivência, evidenciando o terror e o sofrimento causados pela operação militar. Se Youssef não tivesse sido resgatado dos escombros, não está claro se sua morte teria sido incluída na contagem de mortos, uma vez que a contagem oficial não inclui aqueles que estão desaparecidos sob os escombros.

O sionismo, com suas raízes no colonialismo e racismo, segue para uma derrota lenta, mas inevitável. A política sionista está moralmente derrotada há muito tempo, desde a Declaração de Balfour, quando propôs um modelo de civilização apartada, excludente e racista. A sofreguidão por carne e sangue que atiça as hordas sionistas as impede de perceber a própria derrocada. O ato sanguinário do sionismo é um ato de desespero, que cegou Israel para tudo, inclusive para o abismo à sua frente. Essa cegueira moral e ética condena Israel a uma derrota inevitável, mas fecunda, na medida em que expõe a verdade brutal sobre a natureza do Estado israelense e seu papel como ponte de lança do imperialismo estadunidense.

A hipocrisia da Casa Branca ao declarar o massacre como um sucesso é um reflexo da decadência moral não apenas de Israel, mas também de seus aliados. A comunidade internacional deve reconhecer essa realidade e agir para proteger os direitos dos palestinos. A narrativa de que estão combatendo o Hamas não deve servir como desculpa para a violação dos princípios básicos de humanidade.

A euforia dos militares israelenses diante das explosões que destroem crianças, lançadas de aparatos multimilionários que localizam agulhas em palheiros, ignora as multidões que protestam mundo afora. Nos últimos meses assistimos massivas manifestações da sociedade civil, tanto em países de maioria muçulmana, como Turquia, Irã, Paquistão e Indonésia, quanto em países árabes, como Egito, Jordânia, Líbano e Tunísia ou mesmo em países de tradição cristã, como, como Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha e Canadá. Nesses últimos, as manifestações enfrentam a opressão das forças policiais, demonstrando o descompasso entre o anseio das ruas e as elites políticas burguesas de cada um desses países.

A comunidade internacional deve reconhecer essa realidade e agir para proteger os direitos humanos dos palestinos. O “combate ao terrorismo”, argumento que Israel e as potências imperialistas usam para cometer massacres, não deve servir como desculpa para a violação dos princípios básicos de humanidade. O uso desproporcional da força militar levanta sérias preocupações sobre possíveis crimes de guerra cometidos por Israel. Instituições como o Conselho de Direitos Humanos da ONU e organizações de defesa dos direitos humanos têm o dever de investigar essas ações e responsabilizar os responsáveis por tais atrocidades. É urgente que a comunidade internacional intervenha para proteger os direitos fundamentais dos palestinos e promova uma solução pacífica e duradoura, baseada no respeito mútuo e na implementação das resoluções pertinentes das Nações Unidas. Também é essencial que os diversos movimentos de luta pela paz continuem denunciando os crimes e atrocidades cometidos na Palestina ocupada. Jamais devemos normalizar os massacres!

* Gustavo Guerreiro é doutor em políticas públicas e Diretor de Pesquisas do Cebrapaz.