ARTIGO | Gustavo Guerreiro – A batalha eleitoral da Venezuela e o cerco imperialista

Por Gustavo Guerreiro*

As eleições na Venezuela expõem de maneira contundente o caráter hipócrita da direita venezuelana e latino-americana, colocando em xeque a relação entre soberania nacional e democracia eleitoral naquele país. A extrema direita, de caráter fascista, representada por María Corina e seu preposto eleitoral Edmundo González, atua como ponta de lança do imperialismo estadunidense, cujo desespero em ampliar sua influência no subcontinente sul-americano leva à cooptação de vários países para destituir da Venezuela qualquer resistência aos interesses geoestratégicos das potências do Norte.

Nicolas Maduro, presidente reeleito da Venezuela

O cerne dessa questão está no controle da maior reserva petrolífera do mundo e na distribuição do petróleo produzido pela PDVSA. Para os Estados Unidos, o controle da distribuição do petróleo é crucial, pois permite manipular os preços internacionais dessa commodity que, apesar do movimento inexorável rumo à transição energética, ainda se mantém como a principal fonte de energia global, com tendência a permanecer assim por longos anos.

A resistência da Venezuela ao imperialismo destaca-se por investir os recursos petrolíferos em políticas sociais e manter o compromisso com a integração latino-americana, mesmo sob ataques políticos de presidentes da própria região, como Boric, do Chile e Milei, da Argentina. A marca Latina não é uma região imune às contradições de classe e ao papel entreguista e vassalo de suas elites, historicamente comprometidas com a hegemonia estadunidense. Compreender essas questões subjacentes e as contradições internas da conjuntura venezuelana é fundamental para manter o foco no imperialismo estadunidense, que se encontra em franca decadência.

A narrativa golpista opera de maneira peculiar: ao mesmo tempo em que desacredita todo o processo eleitoral, exigindo atas eleitorais que seus próprios países não fornecem (algo que não exigem a nenhum outro país aliado), reconhece a vitória do candidato derrotado. Este é um script já conhecido dos sabotadores do poder popular, que se travestem de democratas. As atas das eleições venezuelanas tornaram-se as novas “armas químicas” de Saddam Hussein no Iraque, uma clara referência à manipulação de informações para justificar intervenções estrangeiras.

Em termos teóricos, é importante entender que o Estado não exerce um poder próprio, nascido do desenho institucional, como pretendem os estudos institucionalistas. O Estado é, na realidade, a institucionalização do poder nascido das relações sociais de produção, ou seja, do proprietário sobre o não proprietário. O desenho institucional do Estado é resultado do efeito das lutas de classe conforme a história e as tradições de cada país. É assim também é na Venezuela.

A Venezuela, mesmo com seu governo de caráter popular e bolivariano, ainda mantém intactas suas estruturas de representação política nos moldes das democracias liberais. A oposição e os meios de comunicação existem livremente no país, que também mantém a separação de poderes. A retórica golpista, ao falar de “aparelhamento” do chavismo nas assembleias e no poder judiciário, busca desacreditar as instituições, uma vez que não consegue apoio popular necessário nem mesmo para vencer dentro das normas da democracia liberal.

O elemento central desse debate é o controle da influência do poder econômico sobre os processos eleitorais, um instrumento previsto formalmente em diversas democracias, como Brasil, França, Canadá e Alemanha. A França, por exemplo, optou recentemente pelo financiamento público de campanha, limitando as contribuições de pessoas jurídicas e sindicatos. Existe uma tendência global em direção à “proteção” dos processos eleitorais contra a influência desproporcional do poder econômico, embora as especificidades e a eficácia das leis variem de país para país.

Neste contexto, não há como desconsiderar que a Venezuela resiste a um bloqueio econômico dos Estados Unidos, imposto desde 2014, que restringiu várias atividades econômicas, principalmente relacionadas ao petróleo, gás e ouro. Suas reservas internacionais foram criminosamente confiscadas, agravando ainda mais a crise econômica. Ao todo, foram mais de 900 sanções, que atingiram em cheio a vida dos cidadãos venezuelanos. Em outubro de 2023, o governo dos EUA anunciou a suspensão temporária das sanções sobre esses setores, mas a situação política continua a evoluir, com implicações ainda desconhecidas.

Esta situação levanta o seguinte questionamento: se as democracias liberais em situação de normalidade institucional não admitem a interferência abusiva do poder econômico no processo eleitoral, por que o bloqueio não pode ser considerado um abuso do poder econômico? E da pior espécie? Que pesos e medidas são utilizados para determinar o viés de normalidade democrática e institucional que desconsidera ações diretas de potências estrangeiras na reconfiguração das condições de vida de uma nação afetada?

A despeito do terrorismo econômico que se abateu sobre os venezuelanos, recentemente, o Banco Central da Venezuela (BCV) anunciou que o Produto Interno Bruto (PIB) apresentou um crescimento de 8,78% no segundo trimestre de 2024, mantendo uma trajetória de crescimento por mais de três anos, impulsionado pelo aumento do consumo interno. Essa recuperação ocorre após a administração de Maduro ter revertido a crise econômica e controlado a inflação, apesar das sanções internacionais.

O governo de Maduro, por mais que tenha produzido diversas contradições internas, goza de apoio popular e já resistiu a diversas tentativas de golpe e a um longo período de isolamento e crise econômica. Os problemas internos da Venezuela cabem apenas ao venezuelanos! Eis o princípio do respeito à soberania e da não intervenção, fundamento das relações internacionais.

A pressão internacional sobre a Venezuela é atroz. Mesmo nações aliadas históricas sofrem pressão. Há pelo menos 20 países e chefes de estado pressionando o presidente Lula para não reconhecer os resultados do Conselho Nacional Eleitoral da (CNE). Essa pressão, orquestrada pela União Europeia, alguns países sul-americanos, países latino-americanos e os Estados Unidos, tem como objetivo desestabilizar o governo eleito e isolar a Venezuela.

Lula, junto com outros líderes, como Gustavo Petro da Colômbia, pediu o restabelecimento da credibilidade do processo eleitoral, ressaltando a necessidade de transparência por parte do CNE. Outros, como o presidente do Chile, Gabriel Boric, manifestaram preocupações sobre a situação dos direitos humanos na Venezuela, traçando paralelos com situações em outros países da região.

O Brasil enfrenta um dilema em sua postura de política externa em relação à Venezuela e alianças globais. Há um debate sobre se aquela nação bolivariana deve ou não se alinhar com os BRICS, com forte apoio de China e Rússia, que reconheceram prontamente a eleição de Maduro. Mesmo esse debate poderia impactar a integração sul-americana e os interesses estratégicos do Brasil.

Nesse sentido, é imperativo que Lula não titubeie em relação à Venezuela. Como um líder chave da América do Sul, é instado a rever sua postura atual, apesar da pressão para endurecer seu posicionamento crítico. O governo brasileiro deve preservar sua postura histórica de respeito à soberania e autodeterminação das nações, especialmente no contexto da Venezuela. Deve se concentrar no apoio à Venezuela na resolução de questões sociais e econômicas, distinguindo-as das disputas eleitorais.

Ao invés de atuar como fiscal de urna, Lula deveria fortalecer a aliança com a Colômbia e o México para trabalhar rumo à integração sul-americana, aproveitando as vantagens estratégicas dos ricos recursos e a importância que que somente a unidade política regional pode promover. Acima de tudo, é fundamental que denuncie o bloqueio econômico e o intervencionismo golpista dos EUA contra a Venezuela, expondo as contradições e os interesses por trás dessa política imperialista.

A luta contra o imperialismo dos EUA no contexto das eleições venezuelanas é um tema gritante que exige uma análise crítica e uma postura firme por parte dos líderes latino-americanos. É urgente reconhecer as manobras imperialistas, defender a soberania nacional e promover a integração regional como forma de resistência. Somente através de uma postura unificada e solidária, os países da América Latina poderão enfrentar as pressões externas e construir um futuro mais justo e independente para seus povos.

* Gustavo Guerreiro é doutor em políticas públicas e Diretor de Pesquisas do Cebrapaz.