ARTIGO | Gustavo Guerreiro – Guerra.Exe: O complexo militar, as big techs e a nova escalada imperialista

Por Gustavo Guerreiro*

Vivemos tempos nebulosos, sob a égide de um regime de guerra global, ainda que não declarado. A interdependência entre interesses militares e as grandes corporações de tecnologia se aprofunda, operando nos bastidores do poder e moldando a política interna das nações, a geopolítica mundial e, principalmente, a economia global. A crescente militarização econômica, é impulsionada pelos gastos exorbitantes com armamentos e o desenvolvimento acelerado de tecnologias bélicas de uso dual, como inteligência artificial, drones e VANTs, cibersegurança e robótica.

Em meio às tensões que convulsionam a geopolítica mundial, os gastos militares globais alcançaram no ano de 2023 a cifra histórica de US$ 2,443 trilhões. Isso representa um aumento expressivo de 6,8% em comparação com 2022[1]. O dado alarmante, divulgado no último relatório do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), representa a maior alta anual desde 2009. O dado escancara a escalada sem precedentes na corrida armamentista, mas também revela um fator decisivo: o investimento exponencial em tecnologias aeroespaciais e cibernéticas. A projeção é de que esses números sejam ainda maiores em 2024.

A articulação entre as grandes potências militares e as grandes corporações de alta tecnologia evidencia-se na movimentação coordenada dos dez maiores orçamentos bélicos mundiais. Sob a liderança inconteste dos Estados Unidos, seguidos por China e Rússia, todas essas nações ampliaram seus investimentos em arsenal militar, numa demonstração inequívoca do acirramento das tensões internacionais nos corredores do poder global. Ressalte-se que o imperialismo consorciado entre EUA e Europa é o grande motor dessa corrida armamentista, uma vez que tem sido autor dos grandes conflitos mundiais dos últimos anos, com destaque ao conflito na Ucrânia.

Para compreender essa dinâmica, é fundamental analisar criticamente essa interdependência entre militarização e poder das grandes empresas de tecnologia, especialmente as chamadas big techs. Guerras como a movida pela OTAN a partir da Ucrânia e o massacre perpetrado por Israel em Gaza já extrapolaram há muito as fronteiras de meras disputas territoriais ou ideológicas – converteram-se em instrumentos para reorganizar os espaços de acumulação de capital, afetando cadeias de suprimentos, fluxos energéticos e mercados globais.

Os exemplos recentes são eloquentes. Na guerra da Ucrânia, o conflito abalou profundamente o comércio de petróleo e gás entre Rússia e Europa, levando a uma corrida por novos fornecedores energéticos nos EUA. As sanções econômicas e a sabotagem dos gasodutos Nord Stream evidenciam, sem margem para dúvida, o quanto interesses geopolíticos e econômicos caminham de mãos dadas. O massacre em Gaza, por sua vez, escancara o fortalecimento da influência econômica americana, num contexto em que a instabilidade no Oriente Médio afeta rotas comerciais cruciais como o Canal de Suez, alimentando um verdadeiro festival de declarações e tensões pela oposição regional.

Nesse tabuleiro geopolítico, a ascensão econômica da China – materializada no ambicioso projeto da Iniciativa Cinturão e Rota e na articulação de uma nova multipolaridade no Sul global – emerge como desafio à hegemonia americana, intensificando a competição por recursos e mercados. É uma disputa que, nos bastidores, define os contornos da nova ordem mundial.

A pandemia de COVID-19, ao desarranjar as cadeias globais de suprimentos, só fez acelerar esse movimento de militarização e fragmentação. A busca desesperada por salvação e reconstrução das cadeias produtivas criou o terreno fértil para a expansão desse “regime de guerra global”.

Os laços entre militares e grandes empresas, tão característicos do mundo moderno, têm raízes profundas em momentos de tensão internacional e disputas territoriais. Foi especialmente durante a Guerra Fria que essa parceria ganhou contornos mais nítidos, enquanto EUA e União Soviética disputavam a supremacia global. Nesse período, uma rede de colaboração sem precedentes surgiu entre militares e indústrias. Empresas como a Lockheed Martin, Boeing e Northrop Grumman não apenas se tornaram gigantes do setor de defesa, mas também revolucionaram o cotidiano. Muitas dessas tecnologias, hoje consideradas corriqueiras – do GPS aos micro-ondas – nasceram nos laboratórios dessas corporações, inicialmente pensadas para fins militares.

Essa dinâmica entre militarização e poder corporativo hoje extrapola os armamentos convencionais, alcançando a esfera digital. Grandes empresas de tecnologia como Google, Microsoft, Amazon e Palantir ocupam posição central nessa nova fronteira, fornecendo soluções tecnológicas a governos e forças armadas.

O Projeto Maven, do Departamento de Defesa dos EUA, é emblemático desse novo momento. Mesmo diante de protestos internos e controvérsias, empresas como o Google mantiveram suas parcerias militares, evidenciando as complexidades éticas e políticas dessas colaborações.

Nos Estados Unidos, o Pentágono vem injetando bilhões de dólares em projetos de segurança digital através de programas como a DARPA. Na Europa, gigantes como BAE Systems e Thales mantêm parcerias sólidas com governos para aprimorar sistemas de defesa, enquanto startups recebem financiamento público em nome da segurança nacional.

Do outro lado do tabuleiro, na competição estratégica com os EUA, a China desencadeou o movimento conhecido como fusão civil-militar (Military-Civil Fusion, MCF). Essa estratégia centraliza esforços de empresas privadas como Huawei e Baidu, além de instituições acadêmicas, para desenvolver tecnologias de uso dual consideradas estratégicas para o país.

Os riscos para a sociedade civil são enormes, especialmente considerando a manipulação de dados na disseminação de fake news que favorecem movimentos de extrema-direita, corroendo as democracias. Casos recentes envolvendo plataformas como o X (ex-Twitter), de Elon Musk, e a Meta, de Mark Zuckerberg, demonstram o perigo de concentrar tanto poder numa elite digital cada vez mais autoritária.

A falta de transparência e controle sobre essas plataformas permite que grupos extremistas e atores mal-intencionados explorem as brechas para difundir desinformação e minar a confiança nas instituições. A recente declaração de Zuckerberg sobre a Meta abandonar a checagem de conteúdo provocou apreensão quanto ao futuro da segurança online.

A ascensão de figuras como Musk e Zuckerberg como personagens centrais no panorama tecnológico e político global, somada ao contexto da nova administração Trump nos EUA, revela uma confluência preocupante entre o poder corporativo das big techs e os interesses imperialistas da maior potência militar do planeta.

Essa elite bilionária dispõe hoje de ferramentas poderosas a serviço de um novo imperialismo, onde o controle da informação se converte em arma de dominação global. Enquanto lucram com contratos militares e parcerias estatais, esses conglomerados definem o fluxo informacional e os rumos políticos em escala planetária.

As democracias do Sul Global precisam, mais do que nunca, adotar uma postura firme e articulada diante dessa realidade. Não é por acaso que um estudo da UNCTAD revelou um dado alarmante: cerca de 70% dos países em desenvolvimento ainda dependem de serviços digitais controlados por grandes empresas estrangeiras[2]. Essa dependência, além de fragilizar as economias locais, aumenta as vulnerabilidades políticas e tecnológicas, dificultando iniciativas que busquem a tão necessária soberania digital. A demanda por esforços conjuntos ficou evidente em 2021, quando a União Africana aprovou uma série de recomendações para políticas de proteção de dados.

Os países do Sul Global e alianças anti-imperialistas – como os BRICS, o G77+China e a União Africana – devem enfrentar de maneira mais eficaz essa intersecção entre militarização econômica e poder corporativo. Para tanto, é urgente implementar um esforço multilateral com elabore uma estratégia de enfrentamento, combinando regulação e cooperação. Os países devem criar marcos legais robustos e minimamente uniformes que reforcem a transparência no uso dessas tecnologias, sobretudo quanto ao acesso seguro às redes sociais, e garantam a proteção de dados e direitos digitais. Não haverá saída somente com iniciativas individuais. A coordenação entre blocos regionais e fóruns internacionais deve fortalecer alianças que imponham limites à atuação das big techs, exigindo contrapartidas sociais em projetos de infraestrutura e comunicação. No fim das contas, o investimento em inovação local e em polos de pesquisa autônomos – combinando governo, academia e sociedade civil – é determinante para construir alternativas tecnológicas e compartilhar recursos que privilegiem a soberania, a autonomia e um desenvolvimento inclusivo. Só assim será possível deslocar o foco da corrida armamentista digital para aplicações comprometidas com a justiça social, a paz e o fortalecimento das estruturas democráticas.


[1] Dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI). “Military Expenditure.” Relatório Anual 2023. Disponível em: www.sipri.org.

[2] UNCTAD. “Digital Economy Report 2019.” Disponível em: www.unctad.org.

*Gustavo Guerreiro é pesquisador do Observatório das Nacionalidades e diretor de pesquisa do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz).