ARTIGO | Moara Crivelente – Posse de Trump: novas e velhas crises em 2025

Crises globais, militarização crescente e desigualdade marcam o primeiro quarto do século, desafiando o mundo a enfrentar os impactos e construir resistência.

Preparem-se para o impacto? – O ano já começou e temos sido avisados para nos prepararmos para o impacto. Em análises diversas, o pior presságio parece ser o retorno de Donald Trump à Casa Branca, acompanhado do seu cavaleiro do tecno-apocalipse, Elon Musk, e dos seus Secretários e Consultores da sua estirpe. Contudo, há muito que o mundo acelera em rota de colisão. Também por isso, não só estamos avisados como temos mais do que uma noção do que seguiremos enfrentando.

Donald Trump em evento de campanha. Crédito: REUTERS

Chegamos a um quarto de século de já não tão novo milênio. Posto nesses termos, parece haver algum marco a analisar. Por exemplo, começou em 2000 o que alguns entenderam como uma “década disruptiva” – como se as anteriores tivessem sido plácidas. Os mais notórios “eventos” que causaram disrupções – ou intensificaram certos processos – teriam sido os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, seguidos pelas suas invasões do Afeganistão e do Iraque, lançando uma “Guerra ao Terror” que tanto chacoalhou as relações internacionais e as instituições multilaterais propagandeadas desde meados do século 20 como garantes legítimos da “ordem internacional”. Em seguida, veio a crise que eclodiu em 2007-2008 no centro do capitalismo e se espalhou para o mundo, instaurando a política do arrocho e mais intervenções por parte das instituições financeiras.

Também foi naquela década que a Internet intensificou a mudança na forma como parte da humanidade, aquela com acesso e recursos, se relaciona e consome – bens materiais, informações, e mais, catalisando problemas que mais recentemente têm sido subsumidos ao impacto negativo das redes sociais, especialmente na política. Eis que, em 2022, a compra do Twitter por Musk, o detentor da maior fortuna do planeta, pintou mais uma parte desse retrato – um perigo talvez mais aparente do que a sua posse de incontáveis satélites Starlink, da sua tentacular SpaceX, com alcance em “praticamente em qualquer lugar na Terra” – diz a agourenta propaganda. Entre tantas credenciais, segundo a Forbes, Musk criou um comitê de apoio à candidatura de Trump em 2024 ao qual teria doado cerca de 120 milhões de dólares e através do qual financiou o que poderia ser visto como uma espécie de esquema de compra de votos, ao dar diariamente USD 1 milhão para um eleitor de algum estado mais disputado. São muitos fatores para lançar ou confirmar hipóteses sobre o que megalomaníacos fascistoides e oligárquicos podem fazer pelo imperialismo do século 21.

Mas as continuidades dizem muito. De volta a 2000, os líderes globais reunidos na Cúpula do Milênio da ONU emitiram a sua Declaração por um mais pacífico e próspero, de maior igualdade entre os povos e instituições de confiança. Como nos pós-guerras do século 20, tratou-se de um reforço das promessas abstratas do universalismo liberal. “Apenas através de esforços amplos e sustentáveis para criarmos um futuro compartilhado, baseado na nossa humanidade comum, em toda a sua diversidade, poderá a globalização ser tornada totalmente inclusiva e igualitária”, dizia a “Declaração do Milênio”. Construiríamos um mundo de liberdade, igualdade entre indivíduos e nações, solidariedade, tolerância, respeito pela natureza, e responsabilidade compartilhada. Mas apenas um ano depois, as reações aos ataques nos EUA, com intervenções, guerras e políticas ditas de segurança extremamente ofensivas, com vítimas diretas e indiretas, mostrariam para que camadas do planeta esses valores vigorariam. Seguimos resistindo às consequências.

Mantiveram-se constantes a militarização e a degradação do planeta, a exploração e a desigualdade global, catapultando-nos para uma era de “policrise”, o conceito cunhado por Edgar Morin nos anos 1990 precisamente num manifesto sobre o futuro da Terra e recuperado em análises diversas sobre os nossos anos 2020. Chegamos à metade da década e as crises parecem um tanto conhecidas. Pelo menos para a maior parte da humanidade, “normais”, não excepcionais. Portanto, para “os condenados do sul global”, como no título de um livro que faz referência a Frantz Fanon, são crises ou o estado das coisas, sob o sistema como o conhecemos?

Por exemplo, de 2022 para 2023, com 6,8%, o aumento dos gastos militares já tinha sido recordista, alcançando 2,4 trilhões de dólares (R$14,5 trilhões), segundo o Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisa para a Paz (SIPRI). Assim, a indústria do armamento teve um aumento de ganhos de 4,2%, com as 100 maiores empresas do ramo militar faturando 632 bilhões de dólares em um ano. E os próximos poderão ser promissores. Se, no primeiro mandato, Trump demandava que os demais membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) gastassem os 2% do PIB prometidos e “pagassem o que devem” à máquina da guerra global, o presidente eleito agora diz que os atuais 32 membros devem gastar 5%. É um objetivo que os ministros da defesa dos cinco países europeus de maior orçamento militar – Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Polônia – consideram “irrealista”, mas o próprio secretário-geral da aliança, Mark Rutte, já vinha dizendo que o percentual está defasado e precisa aumentar para mais de 3%. Agora, não é o Talibã ou Al-Qaeda, mas sim Vladimir Putin, o principal espantalho: diz Rutte que se os europeus não gastarem mais no setor, é melhor “aprenderem a falar russo”.

Enquanto isso, segundo o Banco Mundial – se for para citar a instituição apesar do seu viés, fechamos 2024 com mais de 700 milhões de pessoas (8,5% da população mundial) vivendo em extrema pobreza, com menos de USD 2,15 por dia. As taxas de empobrecimento nos chamados países de baixos rendimentos aumentaram em comparação com o período pré-COVID-19. Em particular, a África Subsaariana, com 16% da população mundial, já tinha 67% daqueles que vivem em extrema pobreza. Ainda, cerca de 3.5 bilhões de pessoas (44% da população mundial) continuam pobres nos padrões dos países considerados de renda média, com USD 6,85 por dia, enquanto o número de pessoas que vivem com menos do que isso quase não mudou desde os anos 1990. Para piorar, a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) alertava ainda que os países mais pobres gastam 23% das receitas para pagar dívida externa e que uma crise se avizinhava.

Em meados da segunda década deste milênio promissor, enfrentamos diferentes tipos de catástrofes – o genocídio contínuo e televisado, a destruição da natureza, o colapso das instituições multilaterais, a deslegitimação da política e os desvarios dos líderes populistas e fascistas aliados às indústrias de tudo o que pode ser monopolizado, a proliferação dos diferentes tipos de guerra, e tantas mais. Entre a presciência e o desespero, urge construir estratégias conscientes das nossas condições e capacidades nessas diversas frentes. Enquanto isso, as disrupções continuam, mas também desde baixo, com a resistência.

*Moara Assis Crivelente é Diretora executiva do CEBRAPAZ – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz, doutora em Política Internacional e Resolução dos Conflitos e pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal.