Por Caio Botelho*
O Brasil, sob a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, consolidou uma reconhecida tradição diplomática marcada pelo diálogo multilateral e pela defesa da autodeterminação dos povos. Exercendo uma política externa altiva e ativa, o país busca afirmar-se como liderança no chamado Sul Global, sendo referência na mediação de conflitos e um defensor da paz internacional.
No entanto, há momentos na história em que não há espaço para a neutralidade. O massacre em curso contra o povo palestino é um desses momentos. O Brasil tem, agora, a oportunidade histórica de se posicionar de forma inequívoca contra esse genocídio. Diante da escalada de violência promovida por Israel na Faixa de Gaza, torna-se imperativo que o governo brasileiro adote uma medida proporcional à gravidade do crime: romper relações diplomáticas com o Estado de Israel.
O genocídio em Gaza
Desde outubro de 2023, a ofensiva israelense sobre Gaza intensificou-se de maneira brutal. Sob o pretexto de retaliar a contra-ofensiva do Hamas, o Estado de Israel desencadeou uma campanha militar que, na prática, configura-se como punição coletiva contra toda a população palestina. Hospitais, escolas, campos de refugiados, universidades e centros culturais têm sido alvos recorrentes de bombardeios. Centenas de milhares de civis foram mortos ou feridos — a imensa maioria mulheres, crianças e idosos. A destruição da infraestrutura civil é tão extensa que Gaza já não pode ser considerada um território minimamente habitável. Enquanto isso, o bloqueio israelense impede a entrada de alimentos, água e remédios.
O próprio Tribunal Internacional de Justiça aceitou o processo aberto pela África do Sul, que acusa formalmente o Estado israelense de genocídio, e determinou medidas cautelares para cessarem os ataques — todas as medidas foram ignoradas por Tel Aviv.
O governo de Benjamin Netanyahu não esconde sua intenção de eliminar a presença palestina em Gaza e na Cisjordânia. A expansão de assentamentos ilegais, a destruição de vilarejos e a violência sistemática contra civis evidenciam um projeto de limpeza étnica. O Brasil, como signatário da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, tem a obrigação de agir.
A tradição diplomática brasileira
Sob os governos Lula e Dilma, o Brasil já desempenhou papel ativo na defesa dos direitos do povo palestino. Em 2010, o país reconheceu oficialmente o Estado da Palestina com as fronteiras estabelecidas pela ONU em 1967. Em 2014, após outra agressão israelense contra Gaza, o governo brasileiro chegou a chamar de volta seu embaixador em Tel Aviv — gesto que provocou forte reação do governo de Israel. Em resposta, autoridades israelenses chegaram a chamar o Brasil de “anão diplomático” — insulto que apenas evidenciou a tensão gerada por uma postura corajosa.
Entretanto, desde o início do atual genocídio, o governo brasileiro oscilou entre uma postura crítica nos fóruns internacionais e uma cautela excessiva nas ações concretas. O presidente Lula declarou, em fevereiro de 2024, que o que Israel estava fazendo em Gaza “não era guerra, mas genocídio”. Foi uma declaração forte e correta, mas que precisa ser acompanhada por ações diplomáticas mais contundentes.
Não se trata de uma quebra irresponsável da tradição brasileira de equilíbrio nas relações exteriores, mas da defesa do direito internacional. Quando um Estado promove, de forma sistemática, a destruição de um povo — com bombardeios indiscriminados, cerco total e negação de alimentos, água, medicamentos e energia — manter relações diplomáticas torna-se, de fato, um ato de cumplicidade silenciosa.
Não há nada de extremado ou irracional na proposta de romper com Israel. Pelo contrário: diversos países latino-americanos já deram passos nesse sentido. O próprio Brasil já retirou seu embaixador de Tel Aviv desde maio de 2024, assim como Chile e Honduras. Bolívia e Colômbia também suspenderam suas relações diplomáticas com Israel. Esses países demonstraram que é possível — e necessário — alinhar o discurso de defesa dos direitos humanos com uma prática diplomática coerente.
Ao romper com Israel, o Brasil enviaria ao mundo uma mensagem clara: não aceitará que, sob o [falso] pretexto do combate ao terrorismo, se destrua um povo inteiro. Enviaria também um recado a outros países do Sul Global, reafirmando que é possível ter soberania, coragem moral e compromisso com a justiça internacional — potencialmente estimulando outras nações a fazerem o mesmo.
E possível apostar no “diálogo” com Israel?
Um argumento frequentemente utilizado para justificar a manutenção das relações é o de que o Brasil precisa continuar dialogando para influenciar positivamente os rumos do conflito. No entanto, essa estratégia tem demonstrado sua ineficácia. A autoproclamada “comunidade internacional” — leia-se: os países do G7 e seus aliados — permanece em conivente silêncio. Os Estados Unidos seguem fornecendo armas e apoio político a Israel, mesmo diante das evidências de crimes contra a humanidade. A União Europeia vacila entre declarações tímidas e apoio tácito.
O sistema internacional, tal como está organizado, falha sistematicamente em conter os crimes cometidos por grandes potências e seus aliados estratégicos. Cabe, portanto, aos países do Sul Global — entre os quais o Brasil se destaca — exercer a liderança moral e política no enfrentamento desse desequilíbrio.
Reafirmar a solidariedade com o povo palestino
A causa palestina não é uma pauta recente. Ela atravessa décadas de colonização, apartheid, ocupação e resistência. Desde a criação do Estado de Israel, em 1948, o povo palestino vive sob uma política contínua de expropriação e violência. Gaza, em particular, transformou-se naquilo que muitos especialistas chamam de “a maior prisão a céu aberto do mundo”.
No Brasil, diversos setores populares, movimentos sociais, entidades de direitos humanos e parlamentares têm se mobilizado em solidariedade ao povo palestino. Cresce, no país e no mundo, o movimento de boicote a Israel, conhecido como BDS (sigla para Boicote, Desinvestimentos e Sanções). O governo brasileiro não pode ignorar esse clamor legítimo vindo da sociedade civil.
Presidente Lula: é hora de romper as relações com genocidas
Presidente Lula, o senhor tem repetido que é preciso “colocar o pobre no Orçamento” e que governar é olhar para os que sofrem. Pois olhe agora para Gaza. Olhe para as mães que enterram seus filhos, para os corpos carbonizados nas escolas da ONU, para os jornalistas assassinados enquanto documentam a verdade. Romper com Israel é dar uma resposta à altura da tragédia. É fazer História com coragem, dignidade e humanidade.
Romper não significa isolar-se. Significa alinhar-se com os povos. Não significa incitar o ódio, mas recusar a indiferença. Não significa negar o diálogo, mas afirmar que ele só é legítimo quando as vítimas não são silenciadas pelas bombas. O Brasil tem a chance de assumir o protagonismo ético que o mundo precisa. Um protagonismo que vá além das palavras — que se inscreva na História como exemplo de firmeza moral diante da barbárie.

*Caio Botelho é economista e membro da Direção Executiva Nacional do Cebrapaz – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz.
Esse é um artigo de opinião e não necessariamente reflete a opinião do Cebrapaz