Setenta anos depois das Conferências dos Aliados em Yalta e Potsdam, e 40 anos após a aprovação da Ata Final de Helsinque, as relações internacionais entraram em um período de profundas mudanças. As eras bipolar e unipolar da ordem mundial acabaram. Restaurar as velhas formas e conceitos não é mais possível. A ordem mundial está irreversivelmente evoluindo para a multipolaridade.
Por Zivadin Jovanovic, presidente do Fórum de Belgrado por um Mundo de Iguais*
Conferência de Yalta, fevereiro de 1945: Winston Churchill, Franklin D. Roosevelt e Joseph Stalin
O novo desenvolvimento muda fundamentalmente as relações estabelecidas após a queda do Muro de Berlim, abrindo possibilidades para a democratização dessas relações, e para uma maior observância do direito internacional e da Carta das Nações Unidas que está em seu núcleo. Isso também oferece possibilidades para uma melhor proteção dos interesses dos pequenos e médios países, incluindo a Sérvia. O processo de multipolarização não ocorre sem problemas. Particularmente preocupantes são tendências com o objetivo de preservar a dominação e os privilégios de certos países, para legitimar a seu auto-proclamado direito de excepcionalidade, o intervencionismo global e a expansão militar para o Oriente, por todos os meios, incluindo o uso da força militar.
O resultado de tal política de força aplicada pelo Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, na tentativa de manter os privilégios e colocar sob seu controle a riqueza do planeta, são a desestabilização, conflitos e a devastação de vários Estados e sociedades. Os defensores dessa política totalitária assumem a responsabilidade pela desestabilização e dramática escalada de relações globais que ameaçam infligir desastre à humanidade.
As primeiras vítimas dessa política nos últimos tempos foram as duas Iugoslávia(s) – a primeiro, dilacerada por guerras civis impostas no início da década de 1990, e a segunda, devastada durante o curso da agressão ilegal da OTAN em 1999. Assim, os Bálcãs foram transformados em uma zona de instabilidade a longo prazo. A reescrita in vivo da história, patrocinada pelo Ocidente, criou vários pequenos Estados que dificilmente têm a chance de um desenvolvimento autônomo e de independência. Parece que o desenho forçado de novas fronteiras, em violação dos princípios básicos do Documento de Helsinque, ainda não acabou. A prova disso é o roubo da província do Kosovo e Metohija da Sérvia, e a revitalização dos planos para criar a chamada Grande Albânia.
A vítima mais atingida da estratégia destrutiva liderada pelos EUA nos Balcãs é a nação sérvia, agora fragmentada, sem poder e posta sob o controle de regimes fantoches. Paradoxalmente, o Ocidente proclama que o desdobramento da fragmentação da nação sérvia, de um lado, e a (re)integração de outras nações, por outro, são nada menos do que a contribuição para a paz e a estabilidade, ao respeito das normas europeias e democráticas! A questão nacional sérvia é mais do que simplesmente uma [ainda] em aberto, e é ainda mais exacerbada por meio de perturbações e da privação de direitos. Esta situação imposta dificilmente é do interesse da paz e da estabilidade. Claro, isso tem a ver com a engenharia geopolítica, alimentando interesses imperialistas e nada mais.
Problemas econômicos e sociais estão crescendo rapidamente, ao passo que o desemprego dos jovens atinge magnitude dramática. Esta avaliação é corroborada pela fragmentação semelhante de uma série de outros Estados soberanos e nações, em todo o mundo. Em todas as chances, os centros de poder ocidentais não vão abandonar a estratégia de “reorganização territorial” de Estados soberanos por meio de ataques armados, “revoluções coloridas” e outros métodos ilícitos empregados na América do Sul, África e Ásia.
O sistema capitalista liberal produz crises financeiras e econômicas, a pobreza, a miséria, e leva a emigração econômica a uma escala sem precedentes. Ao mesmo tempo, as agressões e os conflitos armados levam milhões de pessoas a deixar suas casas para o exílio e o deslocamento. A política de dominação, a expansão militar e o intervencionismo global, juntamente com a grave violação do direito internacional, resultam na aprofundada desconfiança e discórdia, à retórica de Guerra Fria e à confrontação. A Europa ficou atravessada por bases militares estrangeiras, forças-tarefa de resposta rápida, “escudos de mísseis”, comando rotativo e patrulhamento aéreo incessante cruzando do Báltico para a Anatólia. A Europa de hoje promove mais bases militares estrangeiras, bombardeiros e mísseis do que no auge da Guerra Fria.
Pode-se perguntar, qual é a finalidade? É tempo de pôr fim às tendências perigosas e ao dramático aumento de tensões que cada vez mais ameaçam a segurança, a paz, a convivência e as relações normais. Fazemos um apelo pela abertura, o diálogo e a parceria na resolução de todas as questões, antes que a situação se agrave para além de qualquer controle. Bilhões de pessoas no mundo rejeitam a política de confronto e guerras. Elas estão cientes de que, com a tecnologia atual de armamentos, isso ameaça de extinção a raça humana. Portanto, atuais atitudes autoritárias na arena internacional, a expansão militar e padrões duplos devem dar lugar ao respeito mútuo entre todas as partes interessadas, sejam políticas, econômicas ou relacionadas à segurança. No mundo de hoje, a racionalidade, a responsabilidade política e a prontidão para o compromisso são necessários mais do que nunca.
Belgrado é o lugar certo para lançarmos um apelo o mais forte possível por um diálogo substancial em pé de igualdade, pela resolução das questões mais importantes que afetam a segurança, a paz e a cooperação. Muito mais frequentemente do que as outras capitais da Europa, Belgrado tem sido vítima da agressão, ocupação e devastação mais horrendas. Tudo isso lhe dá direito moral e obriga-a a iniciar diálogos, a compreensão mútua e a restauração da confiança. Belgrado é um local de origem do Movimento dos Países Não-Alinhados, um dos mais amplos agrupamentos internacionais, perdendo apenas para as Nações Unidas, creditado com enormes méritos para a liberdade das nações colonizadas, a democratização das Nações Unidas e a codificação do direito internacional. Belgrado foi líder de um grupo de países neutros e não alinhados na Europa – Chipre, Malta, a Antiga República Soviética da Iugoslávia, Áustria, Finlândia, Suécia e Suíça – que foram a força motriz para alcançarmos um consenso sobre a Ata Final de Helsinque.
Esta Ata, contando com os acordos de Yalta e Potsdam, com base nos resultados da Segunda Guerra Mundial, e com base na Carta das Nações Unidas, é uma conquista histórica, um marco para novas iniciativas destinadas a garantir a igualdade de segurança para todos os países, independentemente do seu tamanho, população, poder econômico ou poderio militar. Por sua contribuição para o processo de segurança e cooperação europeia, Belgrado foi recompensada sendo escolhida para sediar a primeira Conferência pós-Helsinque da OSCE, em 1977.
Em dezembro deste ano (2015), mais uma vez, Belgrado está hospedando uma Conferência Ministerial da OSCE. Mais uma vez, o objetivo é deter a degradação dramática da confiança, as violações do direito internacional, e [o debate sobre] os papeis da OSCE e das Nações Unidas. Mais uma vez, Belgrado parece ser o local apropriado para lançar iniciativas destinadas a aliviar as tensões e a retórica da Guerra Fria, fazendo com que os intervenientes mais responsáveis retornem ao diálogo, ao respeito e ao compromisso mútuo, no interesse da paz e pela sobrevivência da espécie humana.
A segurança e a estabilidade na Europa são indissociáveis ??da segurança e da estabilidade nas regiões vizinhas, no Mediterrâneo, no Oriente Médio e no mundo. Portanto, a segurança e a estabilidade duradouras na Europa não podem ser asseguradas a menos que se conectem à segurança e à estabilidade no Oriente Médio, na Ásia, no Norte da África (Magrebe) e na África em geral. Acabar com o conflito no Oriente Médio, principalmente, com a guerra na Síria, é de suma importância, não só para as nações dessa região, mas, também, para a Europa.
Em paralelo, há a necessidade de se restaurar as funcionalidades dos Estados devastados e de sociedades como as do Afeganistão, Iraque, Iêmen, Somália, Líbia, e muitos mais. Da Europa, assim como de outras partes ricas do mundo, é esperado o apoio à reconstrução econômica e social desses países. Apesar de não ser a única, esta é certamente uma exigência crucial para responder deter refugiados e migrações econômicas dos povos, que colocam um encargo adicional à Europa e, em particular, sobre a União Europeia.
Trágicas guerras civis na região da ex-Iugoslávia e a agressão da OTAN nos anos 1990 deixaram consequências preocupantes não só de natureza socioeconômica, mas também no que diz respeito à instabilidade prolongada, à propagação do terrorismo e a crimes internacionais organizados. Portanto, a região dos Balcãs está longe de desfrutar de plena normalização e estabilidade. A causa raiz, em nossa opinião, é que os países dos Balcãs, apesar de serem o berço da civilização europeia e da democracia, na realidade, nunca foram verdadeiramente aceitos como uma parte igual e integrante da Europa.
É chegada a hora de se livrar da abordagem discriminatória tradicional dos centros de poder do Ocidente para com os Balcãs como uma estrada-ao-nada, um lixão para tecnologias obsoletas, ou um campo de treinamento para os trágicos jogos e experimentos geopolíticos. Enquanto a Europa Ocidental não abraçar a parceria construtiva com os países balcânicos e com a Sérvia, e enquanto não cumprir na prática a igualdade soberana, a soberania e a integridade territorial – os princípios básicos de ambas a Ata de Helsinque e a Carta das Nações Unidas – não estará na posição de esperar para si um estatuto igual vis-à-vis outros atores.
Além disso, tal observância é também um requisito para a proteção de outros interesses que a Europa Ocidental tem. Portanto, parceria, reciprocidade de interesses e igualdade são as condições essenciais para a paz, a estabilidade e a cooperação, não só nos Balcãs, mas também em todo o continente europeu. Tendo em mente o local da Conferência e os preocupantes ataques terroristas recentes em Kumanovo, Bjeljina e Sarajevo, temos razões para apoiar fortemente a paz e a segurança nos Balcãs como uma parte integrante da Europa e do sistema de segurança europeu.
Neste contexto, é muito importante que a nossa Conferência apoie o respeito pelo Acordo de Dayton introduzindo a paz na Bósnia e Herzegovina, e pela Resolução 1244 do Conselho de Segurança (1999) sobre o estatuto da província do Kosovo e Metohija, como documentos legais internacionais de caráter permanente. A posição relativamente a esses dois documentos é uma medida de contribuição para a paz e a segurança nos Balcãs. Fluxos de refugiados e emigrantes são um reflexo de conflitos políticos e militares, doutrinas inaceitáveis, séculos de problemas sociais e econômicos, ganância e extrema desconfiança. Este problema humanitário, social, econômico e, também, de segurança, não pode ser resolvido erguendo-se muros ou cercas, ou pela polícia e patrulhas militares, ou por enromes centros coletivos e muito menos invocando as regras de Dublin ou acordos de readmissão.
A interrupção de qualquer apoio direto ou dissimulado ao chamado “Estado islâmico”, a cessação de financiamento, do treinamento e do armamento às organizações terroristas são pressupostos indispensáveis ??para o sucesso na luta contra o terrorismo. Outra pré-condição essencial para a transição para uma luta genuína e o sucesso é aplicar normas iguais para o terrorismo e os terroristas, sem classificá-los como “nosso” e “deles”, e sem o jogo de padrões duplos – quem são os “terroristas”, quem são os “combatentes pela liberdade”, quem é a “oposição moderada” e afins.
Sem se restabelecer a observância dos princípios básicos das relações internacionais, como é o direito de cada país a estabelecer relações internas e externas independentes, a soberania e a integridade territorial, incluindo a soberania sobre os recursos naturais e econômicos do país – seria difícil conduzir qualquer luta eficaz contra o terrorismo, ou estabelecer a paz, a segurança e o progresso para todos. O desenvolvimento socioeconômico dos países de origem do terrorismo e da emigração, juntamente com os planos para a reconstrução, a educação e o emprego dos jovens, em especial nas regiões afetadas pela guerra (Oriente Médio, Magrebe, países da África Subsaariana), tem de tornar-se parte integrante de uma estratégia global de luta contra o terrorismo.
Chegou o momento de convocarmos uma conferência mundial sobre o combate ao terrorismo, com vista ao estabelecimento de uma organização e de agendas de execução para a adoção de uma convenção mundial sobre a prevenção de crimes de terrorismo, sob os auspícios das Nações Unidas? Tomando como os pontos de partida as consequências desastrosas das violações do direito internacional – especialmente as violações da Carta das Nações Unidas e da Ata Final da OSCE, o perigo decorrente da disseminação descontrolada de arbitrariedade e caos – apelamos a todos os interessados ??em relações internacionais a agir de boa fé e cumprir compromissos aceitos, e a reforçar a autoridade das organizações internacionais universais. Nenhuma organização regional pode pretender substituir o papel da ONU e da OSCE na salvaguarda da paz, da estabilidade e da cooperação.
Desde Helsinque em 1975 até Belgrado em 2015, numerosas e profundas mudanças e novas circunstâncias ocorreram. No ponto de sua formação, a CSCE (OSCE) tinha 35 membros, enquanto agora abriga 56. Nos últimos 40 anos de trabalho, a OSCE acumulou tanto experiências positivas e negativas numerosas. No início dos anos 1990, a OSCE transgrediu o princípio do consenso e, no caso da Iugoslávia, estabeleceu um precedente perigoso adotando uma decisão ad hoc, invocando o modelo “consenso menos um”. Além disso, a OSCE tenha sido usurpada, como no caso da Missão de Verificação no Kosovo (final de 1998 até início de 1999), que, em vez de ser civil e dirigida à verificação, foi composta por oficiais militares e de inteligência policial.
O KVM agiu como um serviço de apoio em rede e reagrupamento do KLA terrorista após o último ter sido despedaçado pelas forças de segurança sérvias. Nesta capacidade, o KVM serviu aos preparativos para a agressão da OTAN, em que o KLA participou como um aliado da OTAN. A OSCE de hoje se depara com enormes e novos desafios. Há razões para considerar seriamente o esboço e a adoção da Carta da OSCE, que elaboraria melhor e harmonizaria os objetivos da OSCE, sua organização e a forma de seu funcionamento, de modo a corresponder à experiência adquirida, às mudanças sofridas e aos novos desafios. Segurança não é um privilégio de alguns grandes e poderosos ou de apenas de membros de clubes exclusivos; ao contrário, é um direito igual de todas as nações e Estados, independentemente da sua dimensão individual, militar ou o seu poder econômico.
Portanto, nossos esforços devem ser direcionados à construção e à melhoria de tal sistema, que garanta a igualdade de segurança a todos os países e povos.
*Apresentação na Conferência Internacional “Yalta, Potsdam, Helsinque, Belgrado: Buscando uma Ordem Mundial Segura”, realizada em Belgrado, em 24 e 25 de Novembro de 2015
Tradução: Cebrapaz