A ocupação marroquina do Saara Ocidental continua sendo o último caso de descolonização da África. O exército marroquino invadiu o território em 31 de outubro de 1975 apesar de uma clara decisão emitida pelo Tribunal Internacional de Justiça poucos dias antes, em 16 de outubro do mesmo ano.[1] Em 6 de novembro de 1975, o Marrocos organizou o que chamou de “Marcha Verde” para oficialmente invadir o norte do Saara Ocidental, levando 350 mil colonos marroquinos para o território, com a cumplicidade da Espanha, a potência colonial no território desde 1884.
Por Malainin Lakhal*
O Conselho de Segurança das Nações Unidas imediatamente instou o Marrocos a se retirar do território,[2] mas o Rei marroquino foi firmemente apoiado pela França e outras potências ocidentais. Ficou claro que o Marrocos estava violando não apenas os princípios da Carta das Nações Unidas, como abster-se da “ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer estado”,[3] mas também o princípio sagrado da Ata Constitutiva da União Africana do “respeito às fronteiras existentes quando da conquista da independência.”[4] É por isso que ambas as organizações adotaram a mesma posição: a rejeição do fato consumado colonial-marroquino e a insistência na necessidade de descolonizar o Saara Ocidental através de um processo genuíno de autodeterminação sob os auspícios da ONU e da UA.
Fatos essenciais
Muitas análises tendem a apelar por uma resolução pacífica e mutuamente aceitável a este conflito, mas às vezes evitam propor soluções que corresponderiam às condições necessárias para uma solução justa.
Uma solução “justa” nunca poderá ser alcançada se as propostas colocadas sobre a mesa violarem o direito internacional. Infelizmente, é isto o que muitas vozes parecem sugerir, propondo “soluções” que violam a Carta da ONU, a Ata Constitutiva da UA e, pior, alguns dos principais pilares do direito internacional moderno, sobretudo o direito dos povos à autodeterminação e a soberania do povo sobre seu território e seus recursos.
Outras propostas, como a “autonomia ampla” [5] marroquina, são simplesmente tentativas de normalizar a ocupação ilegal. A ONU nunca reconheceu qualquer tipo de soberania marroquina sobre o território do Saara Ocidental e identificou o Marrocos como uma força ocupante em duas resoluções da Assembleia Geral.[6] De acordo com o direito internacional, uma potência ocupante não pode exercer controle sobre o território ocupado. Na verdade, a potência ocupante não tem o direito a mudar a configuração demográfica, econômica ou política do território ocupado, e deve respeitar as normas e princípios do direito internacional no seu tratamento da população em território ocupado de acordo com a Convenção de Genebra e o Capítulo 11 da Carta da ONU, entre outros instrumentos. De fato, não deve impedir a realização do direito do povo à autodeterminação e à liberdade.
A União Africana (anteriormente conhecida como a Organização da Unidade Africana [OUA]) foi além. A OUA reconheceu formalmente a República Árabe Saaráui Democrática em 1982 como a autoridade legítima no Saara Ocidental, após envidar enormes esforços para convencer o Rei marroquino Hassan II a encerrar este ato de agressão contra seus vizinhos. A União Africana tenta levar os dois estados membros, Marrocos e a República Saaráui, a negociar sob os auspícios da ONU, sem pré-condições, para alcançarem uma solução que encerraria este conflito.[7]
Quais normas para qual solução?
A opinião do Tribunal Internacional de Justiça de 1975 indicou que o povo saaráui nativo do Saara Ocidental são a única força soberana no Saara Ocidental. Também considerou que “não encontrou laços legais de tal natureza que possa afetar a aplicação da resolução 1514 (XV) na descolonização do Saara Ocidental e, em particular, o princípio da autodeterminação através da expressão livre e genuína da vontade dos povos do Território.” (para. 129, 162)
Por isso, qualquer solução proposta a este conflito de contornos evidentes de descolonização deve ser decidida e aprovada pelo povo do Saara Ocidental e apenas ele. Nenhum outro país, organização ou entidade tem a prerrogativa para decidir sobre o futuro político do território.
Além disso, a forma de consultar o povo do Saara Ocidental, como prescreveram as resoluções 1514 e 1541 da Assembleia Geral da ONU e confirmaram mais de 100 resoluções da ONU, só pode ser alcançada através de uma votação genuína e livre em um referendo por autodeterminação, supervisionado pela ONU e a UA, em que o povo tenha várias opções, inclusive a independência, a livre associação a outra entidade ou a integração a uma entidade existente. Por isso, qualquer consulta que não inclua a independência será uma contravenção ao direito internacional.[8]
Uma solução justa, duradoura, realista e mutuamente aceitável
Uma fórmula adotada pelas várias resoluções do Conselho de Segurança da ONU considera que a solução mutuamente aceitável ao conflito deve ser justa, realista e duradoura. Várias interpretações podem ser dadas esses quatro termos, mas uma leitura que não pode ser ignorada deve certamente ser relacionada às realidades no terreno e aos fatos políticos e jurídicos.
Uma solução justa deve respeitar a lei. Tão simples! A ONU não pode permitir que o Marrocos imponha um fato colonial consumado no Saara Ocidental em violação dos princípios da ONU. O Marrocos é uma força ocupante, e como tal, deve simplesmente se retirar do território para permitir que seu povo controle sua terra e recursos. Permitir que o Marrocos expanda seu território através do uso da força, como está tentando fazer, destruirá o sistema internacional moderno por completo.
Da mesma forma, uma solução duradoura só pode ser legal se for aprovada pelo povo do território colonizado. Uma vez que ele decida o destino do seu território em um processo legítimo, a decisão que tomar permitirá que a paz seja restaurada.
Por outro lado, impedir que o povo saaráui decida livremente o seu futuro provavelmente o levará a contestar os resultados de qualquer solução interpretada como uma imposição. Ninguém pode prever a extensão da reação dos saaráuis em tais circunstâncias, ou a extensão da instabilidade e do conflito que elas acarretarão para a região, o continente e o mundo.
A solução para o conflito deve ser também “realista” de acordo com várias resoluções da ONU. Mas, novamente, devemos interpretar apropriadamente os fatos no terreno e fazer as perguntas corretas: O Marrocos controla realmente o território? Poderá legalizar sua ocupação ilegal? As propostas do Marrocos são realistas? Caso sejam, por que o Marrocos não conseguiu convencer os saaráuis?
Uma solução “realista” só pode ser uma solução que garanta uma paz duradoura no território. Qualquer solução que não for aceita ou satisfatória para o povo saaráui nunca ajudará a resolver o problema. O que é real no terreno é que o Marrocos ainda é uma potência ocupante. Não poderia normalizar sua ocupação e ainda enfrenta enormes desafios na administração diária do território. O Marrocos destaca milhares de forças armadas e unidades policiais para controlar o território cometendo todos os tipos de abusos dos direitos humanos e violando todas as normas do Direito Internacional Humanitário. É desafiado pela Frente Polisario no tocante à exploração ilegal dos recursos naturais do território. As duas decisões históricas do Tribunal de Justiça da União Europeia de 2016 e 2018 são os mais recentes exemplos das interpelações bem-sucedidas da Polisario.
Soluções justas e mutuamente aceitáveis
A resolução do conflito no Saara Ocidental inaugurará uma nova era nas relações internacionais. Qualquer solução que viole os direitos legítimos do povo do Saara Ocidental à autodeterminação e à independência apenas levará a mais conflitos e roubará de toda a região norte-africana e a África de tremendas oportunidades de desenvolvimento, integração e estabilidade.
Uma solução justa seria implementar os princípios da Carta da ONU e da Ata Constitutiva da UA, demandando ao Marrocos que se retire imediatamente do território, respeite suas fronteiras internacionalmente reconhecidas e possibilite que a República Saaráui, membro fundador da UA, exerça completo controle sobre todo o seu território. Os dois Estados poderão então negociar um acordo de paz detalhado em que as preocupações e interesses de ambos sejam considerados. Neste caso, a região da África do Norte finalmente poderá construir sua muito esperada união regional, que beneficiará não só a União Africana, mas também a Europa e o mundo.
Outra alternativa é, claro, o retorno ao Plano de Acordo da OUA-ONU de 1991, que foi assinado e acordado pelas duas partes. O plano de acordo é uma grande concessão da República Saaráui, mas garante a soberania do povo do Saara Ocidental sobre a sua terra. Daria ao Marrocos a chance de consertar sua imagem e escapar da armadilha que tem limitado seu potencial na região por quatro décadas.
Conclusão
O Saara Ocidental está localizado numa região afetada pelo terrorismo, pela criminalidade transfronteiriça, o tráfico de drogas e a migração. Falhar em solucionar pacificamente o conflito e com respeito ao direito internacional provavelmente mergulhará a região norte-africana no caos. Por outro lado, resolver pacificamente o conflito, de forma duradoura e justa, permitirá aos países norte-africanos e do Sahel intensificar e coordenar apropriadamente seus esforços para encontrar soluções para os problemas, inclusive através de programas intensivos de investimento econômico e social nas zonas fronteiriças onde falta desenvolvimento, além uma coordenação mais forte em termos de segurança.
A violação do direito à autodeterminação também ocasionaria um perigoso precedente no direito internacional. Levaria a comunidade internacional em direção a um futuro incerto onde nações fortes podem violar a integridade territorial e a liberdade da mais fracas.
Após 43 anos desde sua invasão e ocupação militar do Saara Ocidental, o Marrocos tem fracassado em legalizar seu status internacional ou regionalmente e não conseguiu convencer o povo saaráui sob ocupação a aceitar seu fato colonial consumado. Ainda pior, o governo marroquino tem problemas para administrar seu próprio território como internacionalmente reconhecido, o que se evidencia pelos problemas políticos, econômicos e sociais que o povo marroquino sofre. Resolver o conflito no Saara Ocidental de acordo com o Direito Internacional aliviará o Marrocos deste fardo e talvez dará ao seu povo a chance de resolver seus próprios problemas internos adequadamente.
*Malainin Lakhal é um escritor e diplomata saaráui
Tradução: Moara Crivelente / Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)
[1] O resumo da Opinião Consultiva do TIJ está disponível aqui: https://www.icj-cij.org/files/case-related/61/6197.pdf
[2] O Conselho de Segurança acompanhou a invasão marroquina declarada e Marcha Verde. O órgão emitiu sucessivas resoluções em 1975: S/RES/ 377-1975, S/RES/ 379-1975 e S/RES/ 380-1975, todas instando o Marrocos a “Encerrar daqui em diante a marcha declarada para o Saara Ocidental”.
[3] Artigo 2(4) da Carta das Nações Unidas.
[4] Artigo 4 (b) da Ata Constitutiva da União Africana.
[5] A proposta marroquina de autonomia do Marrocos é ilegal e perigosa porque põe em questão a legitimidade internacional e porque pode ter consequências perigosas sobre o próprio Marrocos se aplicada sob qualquer circunstância. Leia o artigo: Moroccan Autonomy for the Western Sahara: A Solution to a Decolonisation Conflict or a Prelude to the Dismantling of a Kingdom? Disponível em: https://www.jstor.org/stable/4007170
[6] Resolução 34/37 de 1979 da UNGA e 35/19 de 1980.
[7] Decisões de 2017 e 2018 da Assembleia da União Africana.
[8] A resolução 1541 completa a resolução 1514 ao afirmar qual o método de consulta à nação ocupada, disponível em: https://undocs.org/en/A/RES/1541(XV)