A presidenta do Cebrapaz e do Conselho Mundial da Paz (CMP), Socorro Gomes, participou da mesa de debates no 20º Encontro do Foro de São Paulo, que aconteceu entre os dias 25 e 29 de agosto. O encontro mobilizou forças progressistas latino-americanas e de todo o mundo, com o tema central foi “Derrotar a pobreza e a contra-ofensiva imperialista, conquistar o bem-viver, o desenvolvimento e a integração da Nossa América.” Leia a seguir a íntegra do discurso de Socorro.
(Foto: Théa Rodriguez / Portal Vermelho)
Queridos camaradas e amigos;
Os tempos correntes têm apresentado novos e mais diversos desafios aos povos em sua luta por um mundo mais justo. Os debates, nestes dias, nos trouxeram reflexões sobre a consolidação do processo integracionista na América Latina e Caribe.
As contribuições dos vários partidos têm uma busca comum: pela construção de uma integração solidária e justa, para além da integração de economias e mercados e que seja assentada sobre o respeito à soberania e à autodeterminação de cada povo, fazendo valer a histórica decisão da CELAC que, através do presidente de então, Raúl Castro Ruy, declarar e América Latina e Caribe uma região de paz. Uma integração que promova o avanço, em nossos países, de políticas de combate à miséria e às desigualdades, infelizmente ainda muito presentes nas nossas sociedades, consequência de várias décadas de devastação neoliberal imposta pelos Estados Unidos. Integração que só será exitosa se contar com a forte participação popular em toda a sua diversidade, de acordo com a história e a cultura de cada país.
Quero compartilhar minhas opiniões sobre alguns dos obstáculos a serem superados no processo de integração soberana do continente latino-americano. A implementação de uma política de paz, defendida por todos os governos de esquerda progressista no continente, é, talvez, nosso maior desafio. A própria construção da integração (de 2005 aos dias atuais) é fruto do reconhecimento da necessidade de somarmos nossas forças para resistir às ameaças constantes de ingerência nos destinos dos países, sobretudo pelos Estados Unidos, que impõem graves e constantes riscos à paz na região.
Por isso, companheiros, a decisão da CELAC tem grande significado, em um contexto em que as grandes potências imperialistas tentam sair da crise agredindo os povos com políticas econômicas que transformam os países vítimas em terra arrasada e, os trabalhadores, como ocorre na Europa, em um exército infindável de desvalidos, no desemprego e sem direitos. As potências intensificam as agressões e o saqueio dos recursos naturais, como o gás, o petróleo, os minérios, a biodiversidade e a água, somados à conquista dos mercados de países vítimas das suas políticas predatórias.
Assim fazem no Oriente Médio, promovendo o caos através de todos os instrumentos: em primeiro lugar, os grandes meios de comunicação e as redes de espionagem que tramam e articulam a guerra suja, com os mercenários que promovem o terror. É o que acontece no Iraque, na Líbia, na Síria e na África. Na Palestina, o povo vive um constante martírio imposto pelo governo colonialista de Israel, que recrudesce o genocídio dos palestinos com o apoio total do imperialismo estadunidense, que acaba de garantir mais US$ 225 milhões ao Exército agressor e reafirma ampla proteção, como foi o voto contrário às investigações do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre as denúncias de crimes de guerra cometidos por Israel.
Talvez nunca tenhamos visto, na história, esta profusão de ameaças impostas pelas potências imperialistas, que enfrentam suas crises em agonizante esforço por manter e disseminar sua hegemonia sobre mundo. Enquanto ganha força a contestação de uma ordem retrógrada em seu belicismo e suas visões agressivas das relações internacionais, ainda se faz necessária maior unidade na resposta e na proposta de alternativas abrangentes de construção de uma nova ordem política, social e econômica internacional. Assistimos à relação estreita entre o mercado financeiro global e o militarismo. As guerras são decididas em segrego, demasiadas vezes sob a influência de grandes grupos econômicos e financeiros que calculam a devastação em termos de lucros e da expansão de mercados.
Evidências disso são as corporações dedicadas ao setor militar, entremeadas na política e em vários setores da economia. O chamado complexo industrial-militar já foi exposto nesta relação enferma entre o capital e a guerra, nas decisões das elites políticas e econômicas sobre o massacre dos povos. A maior representação desses fatores é a expansão e a sobrevivência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a máquina de guerra do imperialismo, que completou 65 anos enquanto avaliamos o centenário da Primeira Guerra Mundial e o 75º aniversário da Segunda Guerra. Companheiros; Ainda que a Otan tenha surgido como uma aliança militar no Atlântico Norte, hoje se trata de uma aliança que ameaça a todos, inclusive o nosso continente. Desde o final da chamada Guerra Fria, ela aposta na sua expansão global e inventa novos “conceitos estratégicos”.
Em 1991, na Cúpula de Roma, os até então 16 membros difundiram um “amplo conceito de segurança”, segundo o qual “reafirmam sua prontidão para enfrentar, em circunstâncias apropriadas, conflitos regionais além do território dos membros da Otan.” Essa concepção continua sendo guiada e chefiada pelos Estados Unidos, cujas doutrinas imperialistas de política externa – arquitetadas ao longo de mais de um século, tendo entre suas primeiras áreas de experimento a nossa América – representam a maior ameaça ao planeta. Mesmo enquanto agonizam em seu declínio relativo, embora ainda sejam a maior potência global devido ao PIB e à expressão militar, principalmente, os EUA mantêm o discurso agressivo, considerando absoluta a sua posição imperialista de gestão do mundo através da ameaça e do terror.
Enquanto seus povos sofrem a agressão dos seus próprios líderes, na imposição de políticas de arrocho que os fazem retroceder décadas no progresso socioeconômico – um remédio ineficaz para uma crise econômica e financeira criada por aqueles que são dela protegidos – os membros da Otan, em conjunto, passaram de um gasto militar de US$ 504 bilhões, em 1990, para US$ 1,1 trilhão em 2010, um total de 3,3% do PIB dos membros somados. Em 2010, a Otan já dedicava 1,1% da força de trabalho das suas populações à guerra. Em 2014, os Estados Unidos voltaram a usar pretextos assombrosos para exigir de seus aliados europeus mais recursos à Otan, enquanto os povos da Europa continuam nas ruas exigindo o fim do grave empobrecimento imposto por seus líderes. No próximo mês, outra Cúpula da aliança belicosa, no País de Gales, deverá debater uma nova onda expansionista já anunciada no seu aniversário, no início do ano.
Entre suas criações está a crise na Ucrânia, alimentada e fortalecida pela máquina de terror imperialista, com o respaldo aos grupos neofascistas que, primeiro, incendiaram as ruas do país e, depois, tomaram o poder; e a disseminação dos grupos extremistas também compostos por mercenários provenientes de dezenas de países para aterrorizar o povo sírio e tentar derrubar o governo da Síria. A atuação desses grupos já transbordou para os países vizinhos e nos leva a assistir outra repetição assombrosa, a das operações militares dos Estados Unidos no Iraque e o seu jogo político de ingerência nos bastidores, com a representação cínica de combate ao terrorismo, criado por sua própria agenda de desestabilização e dominação da região de elevada importância geoestratégica.
Além disso, outro constructo neste jogo é o regime sionista de Israel, o maior aliado do imperialismo estadunidense que, nos dias recentes, conduz mais uma ofensiva contra a Faixa de Gaza, no contexto da sua política abrangente e contínua de genocídio, opressão e expulsão do povo palestino. Seguros da impunidade garantida por um sistema internacional e penal injusto e instrumentalizado, assim como pela aliança estadunidense (que não só financia Israel em mais de US$ 3 bilhões anuais desde a década de 1970, mas também protege os líderes israelenses vetando mais de 50 resoluções no Conselho de Segurança das Nações Unidas, por exemplo), os líderes sionistas avançam na ocupação e na colonização da Palestina, no massacre do seu povo e na ameaça generalizada aos vizinhos árabes, detendo inúmeras ogivas nucleares não declaradas e não inspecionadas. Israel é o único país do Oriente Médio a possuir esta arma de destruição massiva, mas conta com a cumplicidade cínica e hipócrita dos EUA para apontar o dedo acusatório contra a Síria, o Irã e até a Palestina como supostas “fontes da insegurança” regional e, mais importante, da “insegurança de Israel”.
A inauguração da 68ª sessão da Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2013, foi cenário da oposição diametral de posições sobre o sistema internacional. Enquanto a presidenta brasileira Dilma Rousseff abria a sessão com um discurso contundente sobre um mundo mais justo e de respeito à soberania dos povos, assim como inúmeros líderes da América Latina, da África e da Ásia, o presidente estadunidense Barack Obama mantinha sua arrogância afirmando, não pela primeira nem pela última vez, a “excepcionalidade” do seu país, que continuará, afirmou ele, agindo como a polícia do mundo, com respaldo de comparsas na Europa. Ficou marcado, neste período, o escândalo da espionagem global estadunidense, defendida com enorme desfaçatez quando o segredo desta prática ilegal foi revelado. Os EUA contaram com a cumplicidade ativa de aliados nesta empreitada de violação generalizada da soberania e dos direitos civis mais básicos da população global e inclusive de governantes.
Além disso, a articulação de golpes apresentados como “revoltas populares” na Ucrânia, no Oriente Médio e na América Latina apenas colocou outro disfarce nas práticas de “mudança de regime” antes orquestradas pelos EUA através dos militares e das elites civis contra governos legítimos e populares que ousaram desobedecer ao império. As tentativas de derrubar Hugo Chávez e, depois, Nicolas Maduro, na Venezuela, Rafael Correa, no Equador, Evo Morales, na Bolívia, e o golpe contra Fernando Lugo, no Paraguai, demonstram que o imperialismo pode mudar a forma de agir, mas seu objetivo é o mesmo: manter a sua hegemonia, seu domínio e controle do mundo. As conquistas sociais e as políticas progressistas que contestaram os antigos modelos de dominação das elites, em especial na América Latina, entretanto, são correspondidas pelo império e pelas classes antes dominantes com violência direta ou indireta, com um papel central da mídia conservadora e alienante.
Por isso, fica evidente que a nossa luta pela paz e por uma ordem global mais justa e representativa se dá em frentes diversas. Buscamos aprofundar e fortalecer o desenvolvimento, as conquistas sociais e a superação de conflitos como o na Colômbia, fundamental para todos os povos da América Latina. A militarização da repressão e o massacre dos camponeses mais uma vez contou com o respaldo dos Estados Unidos, que viram na tragédia do povo colombiano outra oportunidade de manter sua presença na nossa região. Ainda enfrentamos este desafio, mas o avanço dos diálogos de paz sediados em Havana traz-nos grande esperança. Além disso, os governos progressistas abriram uma nova página na história da América Latina e do Caribe, uma que precisamos proteger e promover com todo empenho. Os povos tomam consciência da importância da luta pela paz e anti-imperialista. As ameaças que enfrentamos são multifacetadas, mas os obstáculos não são intransponíveis.
Temos importantes conquistas a comemorar e possibilidades de alcançarmos ainda mais em nossos objetivos de reformulação de um sistema internacional baseado na dominação e exploração dos povos, por uma ordem de respeito a todos os povos, em que a paz e a solidariedade sejam uma realidade nas relações globais. Essas experiências mostram a necessidade premente de fortalecimento da nossa luta nesses tempos que apresentam os mais graves desafios.
O imperialismo busca todas as formas para sobreviver e se expandir à custa do sofrimento dos povos, investindo recursos praticamente infinitos na guerra enquanto ainda há questões essenciais a serem superadas, como a fome, a pobreza e graves doenças que dizimam milhares de pessoas no mundo, especialmente no continente africano, neste momento, com a contaminação pelo ebola. A soberania e a autodeterminação dos povos, constantemente atacadas pelo avanço imperialista, são também combustível do nosso empenho pelo fim das políticas de dominação global.
É também neste sentido que as forças progressistas dedicadas a este novo quadro de relações internacionais e empenhadas na consolidação da integração latino-americana e caribenha precisam seguir atentas às prioridades da luta pela paz, contra a política de dominação imperialista e pelo fortalecimento dos nossos vínculos, da nossa unidade e da solidariedade. Seguem insistentes as imposições neoliberais das elites latino-americanas, respaldadas pelas potências imperialistas que já submergiram o nosso continente no empobrecimento e na exploração dos povos trabalhadores.
As alternativas de esquerda são avançadas, mas devem ser enraizadas através de mais unidade na construção de estratégias capazes de derrotar a política belicista do império em decadência e seus tentáculos em nossos países.
Tenho a convicção de que a integração soberana da nossa região é uma realidade cada dia mais exitosa. América Latina e Caribe fortalecem-se como região de paz e solidariedade.
Socorro Gomes
Presidenta do Cebrapaz e do Conselho Mundial da Paz
La Paz, Bolívia, 28 de agosto de 2014