Quase 530 páginas de um relatório publicado pelo Comitê de Inteligência do Senado dos Estados Unidos confirmam o que movimentos pela paz e anti-imperialistas de todo o mundo já têm denunciado reiteradamente: o governo estadunidense e sua Agência Central de Inteligência (CIA) usam tortura em prisões secretas, embora tenha sido denominada “práticas avançadas de interrogatório”. O programa secreto da CIA foi lançado pouco após os ataques de 11 de setembro, a tragédia usada pelos EUA para justificar agressões, invasões, ocupações e violações graves dos direitos humanos contra vários povos em todo o mundo, na chamada “guerra contra o terror”.
O relatório do Comitê de Inteligência do Senado dos EUA cobre o período de 2002 a 2008 e averigua as “técnicas de interrogatório” da CIA aplicadas a dezenas dos 119 homens que deteve em suas prisões secretas durante este período. Em 2002, por exemplo, os Estados Unidos inauguraram seu centro de detenção na base naval mantida ilegalmente em Guantânamo, contra a vontade do povo cubano.
Segundo o Comitê, a CIA “enganou a Casa Branca e o Congresso frequentemente” sobre as características do seu programa. Entretanto, diversos chefes desta e outras agências e parlamentares dedicaram-se a defender publicamente o que classificaram de “técnicas avançadas de interrogatório”, o que inclui a simulação de afogamento, a privação de sono, entre vários outros abusos e tratamentos cruéis.
De acordo com uma cronologia elaborada pelo jornal estadunidense The New York Times a partir do relatório, dias depois dos ataques de 11 de setembro, o então presidente George W. Bush deu autoridade à CIA para capturar, deter e matar “operativos da Al-Qaeda” em qualquer parte do mundo. Em fevereiro de 2002, ele assinou arbitrariamente uma ordem Executiva segundo a qual o Artigo 3º das quatro Convenções de Genebra de 1949 (relativas ao Direito Internacional Humanitário), sobre a proibição da “mutilação, tratamento cruel e a tortura” não se aplicaria aos capturados integrantes da Al-Qaeda ou do Talibã.
No mês seguinte, março de 2002, Abu Zubaydah foi o primeiro detido sob a custódia da CIA, e suas sessões de interrogatório foram gravadas em vídeo. Ele era “suspeito” de integrar Al-Qaeda, mas depois a agência voltou atrás. Em agosto, Jay S. Bybee, chefe do Escritório do Conselho Jurídico do Departamento de Justiça, dava à CIA autoridade após o fato para usar “técnicas duras de interrogatório.” Os oficiais da CIA usaram a simulação de afogamento ao menos 83 vezes contra Abu Zubaydah, mas o relatório ainda “avalia” o que parece ser a “ineficiência” do método de tortura, uma vez que Zubaydah teria dado mais informações antes do período em que foi submetido à tortura.
Um advogado da CIA informou os líderes dos Comitês de Inteligência da Câmara e do Senado sobre as fitas de vídeo dos interrogatórios, que não deveriam ser destruídas, de acordo com o pedido dos líderes, em fevereiro. Em março de 2003, a CIA usou a simulação de afogamento contra Khalid Shaikh Mohammed ao menos 183 vezes. Segundo o relatório, Mohammed teria se apresentado como o próprio planejador dos ataques de 11 de setembro, mas não havia evidências. Em setembro, ou seja, há 11 anos, o secretário de Estado Colin Powell e o secretário de Defesa Donald Rumsfeld foram informados sobre as especificidades do programa de tortura da CIA.
Segundo outro relatório do próprio inspetor-geral da CIA, de maio de 2004, alguns “interrogadores” estariam “excedendo as regras impostas pelo Departamento de Justiça”. O inspetor questiona a legalidade de alguns métodos e a eficiência do programa. O único resultado foi a ordem do diretor, Tenet, para a “suspensão temporária” dos métodos mais duros.
No mesmo mês, as fitas de vídeo estavam em discussão no Departamento de Justiça, entre os seus advogados, os da Casa Branca e os da CIA. As fitas estavam prestes a ser destruídas, o que não foi proibido explicitamente pelos advogados. No fim do ano, Daniel Levin, que substituiu o chefe anterior do Escritório de Conselho Jurídico do Departamento de Justiça, escreveu um memorando denunciando a tortura e ampliando sua definição, mas foi substituído em seguida.
A CIA detinha o menos 113 homens durante o ano de 2004. Depois disso, apenas seis novas pessoas foram detidas neste programa. Em 2005, o novo chefe do Escritório de Conselho Jurídico do Departamento de Justiça, Steven G. Bradbury, emitiu novos memorandos classificados que endossavam as “técnicas de interrogatório” mais duras usadas pela CIA. Em novembro de 2005, pouco depois de o jornal Washington Post ter noticiado sobre a existência de um programa secreto de prisões, as fitas de vídeo dos interrogatórios foram destruídas. No mês seguinte, a Câmara e o Senado proibiram o tratamento cruel e desumano dos prisioneiros sob custódia estadunidense, mas o diretor da CIA escreve um memorando à Casa Branca segundo o qual os interrogatórios mais duros só seriam realizados com nova aprovação do Departamento de Justiça.
Depois de quase ordenar a exclusão dos detentos suspeitos de pertencer à rede Al-Qaeda e ao Talibã do quadro do Direito Internacional Humanitário, Bush foi informado sobre a tortura em 2006, segundo o relatório do Senado. Ele teria ficado “desconfortável”, segundo os relatos mantidos pela agência, com “a imagem de um detento acorrentado ao teto, vestido com uma fralda e forçado a ir ao banheiro em si mesmo.”
Em junho de 2006, a Suprema Corte dos EUA decide que o Artigo 3º comum às quatro Convenções de Genebra se aplicariam a todos os detentos estadunidenses. Bush então revela o programa ao público em um discurso, dizendo que foi isso o que possibilitou a captura de Khalid Shaikh Mohammed e outros, que seriam transferidos para a prisão em Guantânamo. Depois disso a CIA manteve um número reduzido de detidos em segredo por vários meses antes de também transferi-los para Guantânamo.
Em outubro de 2006, Bush assinou o Ato de Comissões Militares criando novas regras para o interrogatório de “suspeitos de terrorismo”. As regras possibilitariam à CIA retomar o programa antes secreto. Depois de uma avaliação do Departamento de Justiça sobre as Convenções de Genebra, Bush emitiu outra ordem Executiva permitindo à CIA usar alguns métodos de interrogatório proibidos para interrogatórios militares. Um memorando jurídico é anexado à ordem.
Segundo o relatório do Senado, a CIA não usa mais a tortura desde 8 de novembro de 2007. Além disso, nenhum detido é mantido sob a custódia da CIA desde abril de 2008. Só em 2009 é que os memorandos citados foram divulgados. Em 2012, os líderes do comitê do Senado rejeitaram as alegações de que os “métodos avançados de interrogatório” ajudaram a CIA a encontrar Osama bin Laden.
Quando Barack Obama assumiu a presidência dos EUA, assinou ordens pelo fechamento do centro de detenção e tortura em Guantânamo, assim como a proibição de prisões secretas, mas uma série de jogadas legislativas no Congresso impedem ou problematizam a transferência dos detidos, especialmente para os EUA.
Entre as polêmicas levantadas pelas práticas que constituem graves violações dos direitos humanos e crimes de guerra perpetrados pela CIA e pela liderança dos EUA, os voos secretos que transportavam pessoas ilegalmente detidas entre países também foram denunciados nos últimos anos, além dos abusos específicos em prisões como a de Guantânamo e a de Abu Ghraib, mantida pelos EUA no Iraque e recentemente fechada.
O histórico de abusos, tratamentos cruéis, torturas, prisões secretas e detenções arbitrárias de “suspeitos” na guerra mundial dos EUA “contra o terror” é conhecido e reafirmado através do relatório, que foi concluído em 13 de dezembro de 2012, mas só divulgado, após revisão, em 3 de dezembro de 2014.
Do Cebrapaz
Moara Crivelente