O professor Frederico Carvalho, membro do Conselho Português para a Paz e a Cooperação, afirmou que ainda são atuais as recomendações adotadas há 60 anos pelo Conselho Mundial da Paz (CMP), em Estocolmo.
O ativista participou, na quarta-feira (7/4), do seminário sobre a Revisão do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), em Brasília.
Promovido a partir de sugestão do senador Inácio Arruda (PCdoB-CE), o seminário ocorre um mês antes da realização da 8ª Conferência das Partes de Revisão do TNP, agendado para maio, em Nova York.
Carvalho discursou na abertura do encontro, durante o painel “O desarmamento e a não proliferação nuclear frente à Conferência de revisão do TNP”. Os participantes desse primeiro painel ressaltaram a necessidade de retomar o debate sobre o desarmamento nuclear do mundo.
Segundo o membro do Conselho Português para a Paz e a Cooperação, o mundo precisa fazer valer um dos princípios do CMP, entre os quais a de considerar criminoso de guerra o governo que primeiramente usar armas nucleares.
Leia abaixo a íntegra da intervenção de Frederico Carvalho
O Tratado de não-proliferação é fruto de circunstâncias históricas marcadas pelo desenlace da segunda guerra mundial que culminou na derrota do nazi-fascismo na sua forma, militarista, mais agressiva. É fruto também dos traços dominantes da configuração da correlação de forças a nível mundial existente no pós-guerra até à dissolução da União Soviética. A partir daí a evolução da situação mundial não podia deixar de condicionar o destino do Tratado.
A formulação das várias cláusulas do Tratado de 1970 reflete as condições da respectiva gênese e é, em vários aspetos, contestável e contestada. Desde logo a discriminação entre estados possuidores de armas nucleares e estados que as não possuem. De qualquer modo considera-se que o Tratado constitui um avanço no plano das relações internacionais, deve ser preservado, defendido e aperfeiçoado. E, sobretudo, deve ser promovido o respeito pelas partes signatárias das disposições que contém, o que manifestamente não tem acontecido.
A nova presidência dos EUA dá sinais que levam a crer poderem estar a serem criadas condições favoráveis ao estabelecimento de consensos mais alargados do que no passado, susceptíveis de conduzir a progressos no sentido da concretização, na prática, dos chamados “pilares do Tratado” ― a não-proliferação, o desarmamento e as aplicações pacíficas da energia e das técnicas nucleares.
Neste contexto tem interesse assinalar a seguinte passagem da intervenção da “Representante Especial do Presidente dos EUA para a não-proliferação nuclear”, feita em 10 de Março último, em Viena, numa Mesa Redonda cujo tema era a próxima Conferência de Revisão do TNP. Referindo-se aos contatos que entretanto foram tendo lugar “com representantes de mais de 80 signatários do TNP”, disse, e cito: “Uma visão comum que nos foi expressa, transcendendo quaisquer diferenças que possam existir entre as partes, é a convicção firme de que o TNP é de crítica importância para a manutenção da paz e da segurança, regional e internacional. Esta é, com certeza, uma visão firmemente partilhada pelos Estados Unidos.” Continuo a citar: “A Conferência de Revisão será a ocasião para que todos os estados parte do TNP se concentrem nos nossos objetivos comuns e reforcem o nosso compromisso para com os princípios base do Tratado.”
Acrescento que a Conferência será igualmente uma boa ocasião para demonstrar se estas palavras terão correspondência em atos.
É sem dúvida um sinal positivo o acordo bilateral conseguido ao mais alto nível entre as chefias americana e russa, recentemente anunciado (25 de Março de 2010), no sentido da redução dos arsenais nucleares estratégicos que viria substituir o caduco START assinado em 1991 e cujo prazo de validade expirou em Dezembro de 2009. A assinatura do acordo deveria assinalar simbolicamente o primeiro aniversário do discurso do presidente americano feito em Praga, a 5 de Abril de 2009, em que Obama expôs a sua visão de um mundo livre de armas nucleares.
A Conferência de Revisão de 2005, realizada quatro anos depois do 11 de Setembro, e num contexto dominado pelos objetivos político ― estratégicos da administração Bush, não só não gerou consensos como decorreu de forma atribulada. Nas palavras de Harald Müller: “A Conferência de Revisão de 2005 constituiu o maior fracasso na história deste Tratado”. Cabe-nos esperar e desejar que em Maio de 2010, os trabalhos sejam mais produtivos.
Como se disse, a situação mundial evoluiu visivelmente. Como poderá esse fato refletir-se no Tratado? A única utilização militar da arma nuclear até hoje ocorrida foi o lançamento de bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. Lançamento de algum modo experimental de armas que hoje seriam certamente consideradas primitivas, no plano técnico. O lançamento, segundo muitos, não era justificável na perspectiva militar de condução da guerra, mas terá sido importante como ensaio real dos seus efeitos na aniquilação de pessoas e bens, quer em termos qualitativos quer quantitativos, Foi também poderoso incentivo para uma corrida aos armamentos nucleares, que levou à situação descrita como de “destruição mútua assegurada” (MAD).
Na fase posterior à dissolução da URSS, a doutrina MAD que, de algum modo, conduziu a uma situação de paz, tensa mas estável, parece ter perdido importância. As duas principais potências nucleares mantêm no entanto arsenais muito consideráveis embora haja quem considere que ocorreu uma significativa degradação das infra-estruturas nucleares militares da Rússia, e que esse fato aumentaria as probabilidades de sucesso de um eventual primeiro ataque nuclear (“first strike”) dos EUA.
Esta é uma razão mais para prosseguir os esforços tendentes a preservar, defender e aperfeiçoar, o TNP, nomeadamente quanto ao “pilar” desarmamento, pois que as duas principais potências nucleares continuam a deter (e mesmo a desenvolver) arsenais que mantêm atual a ameaça contida na doutrina MAD.
Olhando globalmente o fenômeno da proliferação dir-se-ia que as atenções se voltam para certos focos de tensão caracterizados por se tratar de estados que não possuindo armamento nuclear, procurariam dotar-se de tais armas. Porventura o caso mais em evidência será o do Irão, intenção todavia negada pelas autoridades desse país. Outros procurarão desenvolver e tornar mais credível a sua capacidade nuclear militar, como será o caso da Coreia do Norte. Outros poderão ter a tentação ou mesmo a intenção de seguir caminhos semelhantes.
Parece razoável dizer que a motivação subjacente a estas situações será a percepção de uma ameaça militar, mais provavelmente convencional que nuclear, por parte da potência nuclear dominante, ameaça que decorre predominantemente do empenho em controlar soberanamente áreas situadas fora das suas fronteiras, ricas em recursos naturais indispensáveis à manutenção das condições de funcionamento e prosperidade do respectivo sistema de relações de produção.
A esta luz, dir-se-á que o êxito dos esforços para alcançar o objetivo da não-proliferação nuclear, depende de forma crucial do abandono da política agressiva expansionista e de intervenção que se manifesta em relação a estados considerados hostis, independentemente, aliás, de possuírem ou não possuírem armas nucleares. Vejam-se as diferenças de comportamento da potência nuclear dominante mas também de outras potências nucleares signatárias do TNP, relativamente a Israel, à Índia ou ao Paquistão, por um lado, e ao Irão ou à Coreia do Norte do outro. A este respeito vem a propósito referir que, de acordo com uma notícia recente da Associated Press, o Egito declarou ir pressionar a próxima Cimeira da Liga Árabe no sentido de que esta exija que Israel adira ao NPT e submeta as suas instalações nucleares às inspeções da AIEA.
Dificilmente poderão ocorrer progressos significativos no caminho da não-proliferação nuclear sem que os círculos dirigentes dos EUA modifiquem o seu comportamento, objetivos e estratégia. Importa dizer, também, que não é apenas o TNP, em si mesmo, que deve merecer atenção.
Com efeito, não é menos importante avançar no sentido de um acordo no domínio da produção de materiais cindíveis utilizáveis na fabricação de explosivos nucleares, acordo que estabeleça a proibição da produção desses materiais não sujeita a controlo internacional associado a salvaguardas adequadas. Há pelo menos duas décadas que um eventual tratado visando este objetivo vem sendo objeto de negociações, e a ele se refere uma resolução, tomada por consenso, em 1993 na Assembleia Geral das Nações Unidas. Ao longo do tempo muitos e diversos escolhos surgiram entretanto no caminho do acordo que se designa correntemente pela sigla FMT (Fissile Material Cutoff Treaty). Importa notar que os estados que seriam mais afetados por um eventual tratado neste âmbito seriam os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e os estados não signatários do TNP que possuem armas nucleares. Uma vez mais, o caráter discriminatório do TNP é naturalmente ressentido pelos países ditos “não alinhados”, que rejeitarão a instrumentalização do controlo internacional, como aconteceu no Iraque e poderá acontecer no Irão.
Recordando a Conferência de Revisão do TNP de 2005, poderá dizer-se que a aceitação de certas regras que podem condicionar o bom funcionamento ou mesmo o sucesso dos trabalhos, teve nessa Conferência um papel negativo. O agrupamento em grupos regionais, habitual embora não oficial, de estados membros das Nações Unidas, para efeitos processuais no andamento dos trabalhos das reuniões, poderá ser responsável pelo insucesso dos trabalhos, e, segundo alguns observadores, tê-lo-á sido no caso da Conferência em causa. Os referidos grupos são os seguintes: O Grupo “Ocidental e outros” (curiosa designação); o Grupo da “Europa Oriental”; o Grupo da “América Latina e das Caraíbas”; o Grupo “Asiático”; e o Grupo “Africano”. Os EUA não são membro de nenhum dos grupos, embora participem como observadores no primeiro e sejam considerados como membro desse grupo para fins eleitorais. Israel é considerado como membro do mesmo grupo mas com competências limitadas (a pertença de Israel ao grupo asiático é recusada pelos países islâmicos). Em regra formam-se frentes, nos grupos, que assentam mais na consonância de interesses políticos do que na situação geográfica, quando se trata de negociar ou votar. Em situações específicas, e o caso do TNP é exemplo disso, podem surgir posições diversificadas no seio de cada grupo e, quando assim é, acontece que a pressão que normalmente surge para que todos os membros votem de uma mesma forma, pode limitar a capacidade de negociação de membros com posições minoritárias no grupo ainda que, no conjunto dos grupos, pudessem ter vencimento. No caso de que nos ocupamos, esta forma de trabalhar pode ser impeditiva de consensos realmente representativos da maioria, tanto mais que nos vários grupos é duvidoso que todos os membros tenham o mesmo peso. No grupo “Ocidental e outros” incluem-se os países membros da UE que tendem a formar um subgrupo que se reunirá aparte para acertar posições e em que há países com inclinações muito distintas, desde os aliados incondicionais da administração americana que estiver em funções, seja ela qual for, até aos países com um largo passado político coerentemente pacifista. Citando Harald Müller: “Se estas questões fossem debatidas e decididas em plenário, poderia emergir um “centro” que unisse membros dos vários grupos, interessados num resultado positivo. Os radicais seriam então levados a expor-se publicamente, o que certamente aumentaria as probabilidades de se alcançarem compromissos.”
Por outro lado admite-se como vantajosa a modificação de certas regras processuais, nomeadamente, as que dizem respeito à fixação da Agenda ou Ordem dos trabalhos, incluindo a atribuição de tempos aos vários pontos. Não se entende que, mesmo em decisões meramente processuais, vigore a regra do consenso, expondo a decisão ao veto de um qualquer membro individual. A tomada de decisões por maioria qualificada, que é admitida inclusivamente no próprio Conselho de Segurança, em determinadas questões de caráter processual, desde que fixada essa maioria com discernimento, poderia permitir a defesa de interesses essenciais e ao mesmo tempo tornar impossível controlar a Conferência usando trapaças processuais.
Importa ainda dar relevo ao diálogo entre grupos. A auscultação e o diálogo entre membros de diferentes grupos regionais, ou a tal equiparados, abre oportunidades de exploração e concertação de posições, identificando interesses comuns e áreas de compromisso potenciais. Deverá fazer-se um esforço para criar condições de tempo e eventualmente de agenda, para que tal diálogo possa ter lugar sem prejuízo do debate e eventual concertação de posições no interior de cada grupo, mesmo que para isso seja necessário reduzir o número e frequência das reuniões dos diferentes grupos, separadamente.
Por último, se, como aconteceu em 2005, voltar a haver uma sessão de trabalhos destinada a permitir o diálogo entre representantes da sociedade civil, designadamente, ONGs, com as delegações oficiais, importará que aqueles formulem de forma clara e sucinta, questões ligadas a aspetos críticos do Tratado, como o não respeito do Artigo VI, e se mostrem capazes de interrogar diretamente os diplomatas sobre matérias de importância decisiva para a operacionalidade do Tratado sem se envolverem em longos discursos, que não deixam tempo para as respostas.
O Apelo de Estocolmo lançado há 60 anos pelo Conselho Mundial da Paz, de que Frederico Joliot foi um dos principais motores, alertava as consciências para três exigências centrais; “a proibição absoluta da arma atómica, arma de agressão e de extermínio de massas”; a exigência do "estabelecimento de um rigoroso controlo internacional para assegurar a aplicação dessa proibição"; e a consideração de que "o governo que utilizasse a arma atômica pela primeira vez, não importa contra que país, cometeria um crime contra a humanidade e deveria ser tratado como criminoso de guerra".
Estas exigências mantêm-se atuais. Por essa razão, a intervenção que o CMP terá na Conferência de Revisão do TNP, em maio próximo, em consonância com outras organizações que lutam consequentemente pela causa da Paz e da solidariedade entre os Povos, será certamente marcada por estas mesmas exigências. Nos nossos dias, é cada vez mais claro que o desarmamento nuclear é condição necessária no caminho da resolução de graves ameaças, incluindo desequilíbrios ambientais e a depredação de recursos naturais, subordinada à ditadura dos “mercados” e ao lucro de curto prazo, que põem em causa a própria sobrevivência da espécie sobre a Terra.
É claro, também, que o desarmamento nuclear tem uma relação direta com o fim de conflitos causadores de enormes sofrimentos, perdas humanas e materiais, no Iraque, no Afeganistão, no Médio Oriente, e noutros pontos do globo, de forma mais ou menos intensa e nem sempre declarada.
Recordemos o lema do Primeiro Congresso Mundial dos Partidários da Paz reunido em Abril de 1948 e afirmemos a sua sabedoria:” Doravante a paz é uma questão dos povos".
Com agências