O Dia pela Dignidade das Vítimas do Genocídio contra a União Patriótica foi marcado em Bogotá com uma grande marcha e mesas de debate, realizados pela organização Reiniciar, sobre o conflito na Colômbia, seus impactos para a América Latina e os rumos do processo de paz. Socorro Gomes, presidenta do Cebrapaz e do Conselho Mundial da Paz (CMP), participou com balanços do conflito, dos diálogos e da luta por justiça, denunciando a influência do imperialismo estadunidense no respaldo às elites oligárquicas e a militarização de todo o continente. Veja a segunda das apresentações de Socorro:
Painel: “Para além do Conflito Armado”
Foto: Reiniciar
Caros companheiros,
No momento em que avançamos de forma esperançosa nos diálogos de paz entre as FARC e o governo colombiano, questões fundamentais a serem levantadas sobre que paz queremos construir e que justiça demandamos ainda são significativas e precisam ser debatidas.
Ainda em 1984, o acordo entre as FARC e o governo Belisario Betancur deveria ter garantido a participação e o fim da perseguição política, pelo fim de um sistema oligárquico e repressivo. A partir deste momento, deveria ser atendida a reivindicação popular por reformas estruturais e democráticas, como a reforma agrária e a nacionalização dos recursos naturais, pela justiça socioeconômica e pela afirmação da soberania, principalmente através de uma Constituinte construída pelo povo colombiano.
Entretanto, a elite oligárquica não aceitaria a perda dos seus privilégios de exploração capitalista sobre o povo, sobre a terra e contra a democracia, nem o império abriria mão do seu meio privilegiado para exercer um “hegemonismo” execrável contrário a tudo o que sua retórica alega defender. Desde então, a justiça foi postergada e, em seu lugar, mais violência foi institucionalizada, sobretudo com o apoio do imperialismo norte-americano, que se alimenta das fraturas nacionais e do sofrimento popular. A militarização da repressão foi o plano central dos sucessivos governos apoiados e infiltrados pelos Estados Unidos em nosso continente.
Na Colômbia, os sucessivos governos da ultradireita provaram que o povo não pode confiar na oligarquia que se agarra ao poder através da exploração e da violência, dos grupos criminosos e os paramilitares, protagonistas das chacinas no campo, a mando do poder. A falta de compromisso com a paz e com a justiça também minou qualquer confiança nas promessas feitas pelos governos, enquanto o povo colombiano continuava vitimado pela violência escalada.
A União Patriótica é uma representação dos alvos desta violência brutal e disseminada, sujeita a uma história de massacres durante mais de duas décadas. As mais de 6.500 vítimas fatais dessa perseguição e os militantes ainda desaparecidos são os maiores motivos do empenho valioso e corajoso em defesa da justiça, da verdade e da memória em prol da paz real, assim como a continuidade da sua luta pela democracia e pelos direitos do povo colombiano.
Além disso, a Reiniciar denunciou ainda recentemente as ameaças sofridas por quase 200 líderes apenas em setembro, na Colômbia, como uma estratégia de desestabilização, principalmente desde a ultradireita, dos esforços de construção de uma paz justa. No contexto da luta pela memória e pela justiça, também é sempre fundamental lutar pela verdade, para abolir a impunidade e favorecer um debate amplo, para a prevenção contra a violência.
O repulsivo e recente atentado (18/09) em Nariño contra o defensor de direitos humanos Oscar Damián Montufar Andrade foi denunciado e reconhecido pelo Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, colocando em evidência a atualidade da luta contra a violência e a perseguição levada a cabo principalmente por grupos paramilitares a mando da oligarquia. No caso da União Patriótica, a perseguição e o massacre são denunciados como genocídio devido à intenção de supressão de um grupo político contestatório e resistente, principalmente através da sua exclusão do cenário “jurídico-legal” e, sobretudo, da “guerra suja” e das “operações encobertas” de que a UP foi alvo.
O reconhecimento de uma intenção sistemática por trás da perseguição e do massacre perpetrado contra os militantes da União é necessário na defesa da justiça e da verdade para a construção da paz real. Da mesma forma, é fundamental a denúncia incessante dos alicerces dessa política opressora e truculenta, representada, promovida e sustentada pelas oligarquias e pelo imperialismo.
Também fica plasmada, companheiros, a ingerência imperialista dos Estados Unidos que, enquanto promoveram e promovem golpes nos países em que as forças progressistas fortalecem-se, instigaram e respaldaram a sustentação de grupos paramilitares para combater o processo de paz colombiano que desse ao povo e aos trabalhadores rurais maior espaço e participação no poder nacional. Há poucos dias também lemos as notícias sobre os serviços secretos dos EUA estarem envolvidos na espionagem das comunicações das delegações da FARC e do governo colombiano, nos diálogos em Havana.
Novamente, o plano de desestabilização contra a transformação do conflito e a luta pela justiça, pela democracia e pela participação política popular ameaça à paz. Assim como na afirmação da memória de Jaime Pardo Leal e Bernardo Jaramillo Ossa, os candidatos presidenciais da UP assassinados ainda na década de 1980 pela guerra suja da aliança oligárquica-imperialista, a defesa do processo de paz passa pela exigência da verdade e da justiça. Os milhares de militantes do Partido Comunista Colombiano, os deputados, congressistas, vereadores e prefeitos, os jornalistas, defensores dos direitos humanos, camponeses e os rebeldes, todos devem ser lembrados na luta pela justiça e pela paz.
Companheiros, foi a insistência popular na justiça que levou a processos como o que testemunhamos atualmente, em que o povo colombiano conquista, com apoio e a mediação de Cuba, pontos importantes e fundamentais na sua pauta de reivindicações, pelas quais lutam há décadas. Neste sentido, a participação popular nos diálogos e na afirmação das suas reivindicações é crucial para a sustentação e o aprofundamento deste processo, para a construção de uma justiça real e de uma paz verdadeira, através de uma mudança estrutural que passe pela construção da democracia no seio das instituições do Estado, de uma nova Constituição popular e uma nova lógica de governo ao avesso do terrorismo contra o povo colombiano, este que se incrustou ao longo de tantos anos. Para isso, o processo deve partir dos povoados e vilas, aberto de forma ampla e irrestrita à participação popular, ou nunca terá legitimidade e nunca servirá para a transformação do conflito.
Na América Latina e Caribe, buscamos e fortalecemos o avanço progressista, a superação desta lógica histórica de exploração e dominação, em que o imperialismo definiu nossos rumos e traçou nosso destino, sustentando as elites oligárquicas e opressoras e por elas apoiados. É assim que queremos construir a paz verdadeira, justa e duradoura, transformadora.
Bogotá, Colômbia, 10 de outubro de 2014
Primeira apresentação: O que significa a paz na Colômbia para a América Latina
Terceira apresentação: Experiências Comparativas de Processos de Paz – Colômbia